2014/12/22

A profundidade das margaridas

Não é mais uma história sobre um amor platônico, apesar de ser uma história sobre um amor platônico, é mais que uma história sobre um amor platônico: é um afogamento. Afogar-se e ainda querer mais o que lhe mata em seus pulmões do que ar. Nem 500 dias com ela nem 500 dias de verão: primavera infinita até a flor morrer sem sol.

Sua experiência com flores era curta. Sua mãe cultivava avencas e cactos. Gostava de ajudar a mulher a regar as plantas. Nos idos de seus turbulentos quinze anos, teve um cacto, herdado de sua progenitora, que morreu de sede. O cacto, não a mãe. Na mesma época, talvez, quando aprendeu que a internet era um imenso antro de futilidades, descobriu, num teste online, que o copo de leite era sua flor. Não discordou, ele e sua mente superficial, já que adorava beber leite. Bebeu tanto que não bebe mais, desenvolveu uma não-oficialmente-diagnosticada intolerância a lactose. Na vida adulta, ganhou, em duas ocasiões diferentes, de duas pessoas distintas, flores cujos nomes ele não sabia. Secaram, amarelaram, morreram, foram guardadas, uma dentro uma carta dobrada; outra, num livro. 
A delicadeza das plantas e o medo de machucá-las o assustavam, criando a distância. Um apreço distante. Foi então que, depois de se afundar em outros mares, caiu sem querer num oceano de margaridas. Foi puxado a força. Nada contra tinha contra essa flor apenas antes não encontrara encanto suficiente naquelas pétalas brancas para que decidisse se afogar nelas. Até que uma onda o derrubou.
O amarelo, no rosto da flor, estava enegrecido, mais castanho do que amarelo, machucado. Miolo, pétalas, caule, raiz e todas as outras partes das flores ensinadas nas aulas de Biologia enquanto ele matava aula possuíam uma profundidade encantadora. “Quero me afogar”, repetia a si mesmo. Não havia pólen no miolo, apenas magnetismo. Uma explosão magnética ocorria toda vez que passava por perto daquela camomila. Um jardim de encanto. Sabia ele que, apesar do chá de calmaria recente, a planta já passara por um caldeirão de água quente e tormentas. Não conhecia todo o histórico, mas entendia, pois frequentou infernos parecidos.
Com o passar do ano, descobriu que margarida não era uma só, era plural. Muitas flores dentro de uma só. Não teria problema em lidar com mais de uma margarida, já que era cacto dentro de cactos. Uma matrioska de espinhos cheia de feridas internas feitas por si mesma.
Observava, de longe, a gradeza da margarida e quis afagar, sentir, até que seu olfato conseguisse reconhecer apenas o cheiro daquela flor. Queria profundir aquele aroma em todos os cantos de sua existência.
Havia um abismo de encanto dentro e fora dela. Talvez nem ela soubesse disso.
Acreditou que sua antiga amiga fosse atrapalhar o relacionamento, porém ela, a rinite alérgica, manteve-se quieta. Descobriu que não era alérgico. Contudo, calma, nem tudo são rosas: a margarida era alérgica a ele. Despedaçou-se sozinho.
Lembrou-se dos caracóis que um parente mantinha num canteiro de flores mortas de um apartamento no Cabral. Era ele, uma lesma, deixado em barro seco sem conseguir alcançar a margarida no jardim no primeiro andar. Arriscaria se jogar do décimo segundo se a Margarida não tivesse seu caule destruído com o impacto.
Depois de um período de contemplação, foi buscar outro jardim para esquecer a Margarida. Viveu se afogando em flores, olhares e carinhos até secar e virar adubo.

2014/12/14

Patricinha do Maracanã

- Conhece o Wilco?
“Sim, Jesus, etc”, respondi em silêncio a um dos três adolescentes recostados na articulação do Santa Cândida, sentido Capão Raso. Tanto eu quanto Salinger, que não era do tempo dessa banda, permanecemos em silêncio, observando.
- Tô ligado, que que tem?
“Vocês não têm cara de quem gosta de Wilco”.

- Então, piá… Abri um lava-car com ele.

Assim como os dois rapazes que o interlocutor acompanhavam o tal empreendedor, que aparentava ter menos de 20 anos, olhei para ele dizendo, numa entonação adulta, “Quê? Cê tem uma empresa, cara?” Até então, olhava para os garotos acompanhado de uma perspectiva julgadora, antiquada, resolvi apenas ouvir como se fossem meus amigos.
Num momento de silêncio coletivo, resolvi adivinhar onde era o destino deles. Eles desceriam na Bento Viana - mesmo lugar onde desci diariamente há sete anos por dois meses seguidos para um curso para menores aprendizes. Jurei que fariam isso, pois preenchiam o perfil de gente que frequentava aquelas aulas. 15, 16 anos, roupas típicas de adolescentes que necessitam pertencer a um grupo, a uma moda, para não serem losers (mal sabem como é legal ser loser, outsider, deslocado, estranho, etc). Fui desses. Não loser, porque isso sou hoje, mas também já integrei a turma de adolescentes que fazem de quase tudo para serem populares. Até por isso, creio que tenha conseguido identificar os garotos. Já fui um desse tipo. Digo, de biografias, rotinas e bairros diferentes, mas a mesma essência adolescente de provar ao mundo que existe, seja usando roupas e acessórios da moda atual, comprando um carro aos 15 anos, perdendo a virgindade antes puberdade com alguém da mesma rua, entre tantas outras situações, ou, no meu caso, tornando-se o goleiro oficial da turma - numa tentativa de ser incluído no grupo dos populares. Alguém (um holograma de Sartre talvez) deveria surgir para essas pessoas para dizer que para existir, basta existir.
Apesar dos pesares, apesar de eu estar errado em relação ao ponto de parada dos garotos - passaram reto pela Praça do Japão -, apesar de tantas novelas para um garoto de 16 anos, que já teve experiência de negócios e um Monza com módulos de som, turbo e chassi riscado, o que mais me surpreendeu neste adolescente - eu e meu eterno romantismo - foi:
- Já fui casado… Por três meses, piá, com uma patricinha do Maracanã, aí o pai dela descobriu as paradas que eu fazia e separou a gente.
O Balzac em mim começou a escrever um romance inspirado nesse caso. No fim, o velho viúvo confessaria, em seu leito de morte, segurando uma flor de Ipê, árvore sob a qual conheceu sua esposa, que lutou contra o amor adolescente entre a filha e o empresário porque enxergava na própria garota o amor que sentia pela falecida esposa, quando se conheceram, aos quinze anos, e lutaram contra seus pais, desfavoráveis aquele amor. Após o velório, o casal vendeu a casa do recém-falecido, que agora estava com sua eterna amada, e se mudou para o interior de Santa Catarina.
Na verdade, não sei dos porquês nem das consequências do romance com a patricinha do Maracanã, não ouvi o resto do conto. Desci do ônibus antes do fim da relato. Já em casa, comecei a escrever sobre o episódio, mais um daqueles que abandonei leituras para acompanhar disfarçadamente histórias de pessoas desconhecidas.

2014/12/11

Não me mata

Primeira coisa que fiz ao terminar de ler a carta foi pensar no que acontece depois que ele me mata toda vez que assiste (ou assistimos, mesmo que não estejamos juntos) um romance trágico. Poderia perguntar pra ele mesmo, que me entregou a folha sem vontade. Preferi ler em casa e foi melhor: pude desabar no meu colchão. Nem era grande coisa, o texto, mas sei que, se ele se deu ao empenho de escrever a mão e me entregar pessoalmente, era big deal. Esse era um dos encantos nisso que vivemos, apesar da distância atual: a grandeza de coisas simples. De encontros em bancos de praça a despedidas tímidas e ligeiras.
Ele disse que me mata antes do filme de filmes trágicos, mas, se ele faz isso pra evitar minha dor, o que acontece com ele depois? Ele fica sozinho, chorando, sofrendo? Quem é que abraça sua dor? Eu não queria que ele ficasse assim, mesmo que por causa de um filme. Muito menos por minha causa. Eu poderia estar ao lado dele, chorando, sofrendo. Viva.
Pensei em responder a carta, pensei, pensei, demorei. Não tive como retribuir, responder em palavras. Passou-se um tempo, muitos dias, meses, e ainda não havia dado algum sinal de vida pra ele. Talvez eu estivesse mesmo morta. Ou ele, morto. A gente se perdeu. Queria ser reencontrada por ele. Mas eu teimo querer falar sobre sentimentos por ele com olhares, ao lado dele, num lugar qualquer. Dominávamos o "não saber tomar iniciativa", esperávamos pelo conflito de rotas. Durante a espera, passava eu, não sei ele, por outros planetas, camas, bares - porém, ainda na esperança de que ele também estivesse lá me puxasse pra perto dele.
Não sei afirmar se seu sentimento exagerado realmente me incomodava, apesar de não ser algo ruim em doses controladas, mas digo que ele não consegue disfarçar o quanto se joga nas coisas, e parece que gosta disso. De cabeça, sem capacete nem freio, ele vai, não para, até colidir contra o muro da utopia, cair no vulcão do platonismo, se afogar no mar morto da superficialidade... Universos de possibilidades frustradas, destroem-no antes do fim, durante e depois do fim.
Pode até me matar antes do fim, mas me mate também em sua mente, queime todo e qualquer vestígio de boas lembranças do que vivemos. Não quero ser mais uma de suas fantasma, o assombrando com o que não fomos, evocadas em rituais alcoólicos. 
Mentira, não me mata, não! Quero ficar aqui, lá, enfim.

2014/12/05

Sinto falta do teu silêncio

Por viver, já estou morrendo (todos estamos), mas preciso parar de matar mais um pouco de mim toda vez que lembro daquela exposição que vimos juntos (porém separados em nossos silêncios). Ah, não é a única lembrança (não!) que tenho daqueles domingos, daquelas sextas, segundas, terças e daquele sábado. (Sim, meio que guardei desorganizadamente na mente os dias da semana). Nem lembro do que ou quem era a exposição... Na verdade, eram várias, efêmeras em minha cabeça, mas lembro de cruzar contigo pelos corredores e pensar: "Que mulher..." Não sei traduzir teu magnetismo, apenas me aproximo (cada vez mais, sem querer).
Pessoas que saem acompanhadas e prezam pelo silêncio? Sim. Na exposição, a gente trocou frases curtas (diferente de quando conversávamos sobre filmes, séries, pessoas, etc),  mas o efeito da tua presença foi longo. Muito longo. Não sei se persiste. Não sei. Sim, persiste. Insiste.
Sei que queria ter morado contigo naquele lugar por alguns meses até que fossemos eternizados, transformados numa pintura, escultura, poesia, enfim, qualquer arte tão saudosa quanto tua quietude.
E eu... Esquece, deixo aqui o registro da falta que o teu silêncio faz, mas esquece. Aliás, teria você também esquecido o que havia naquele lugar? Lembro da tua presença. 
Não está nos meus planos abraçar a Morte, essa desgraçada, mas saudade mata.
Mas, "se eu parar... pra pensar", o que é que não mata? Amar mata. Perder-me/te/se mata. Perder mata. Vencer mata. Saudade mata. Silêncio mata. Barulho mata. Viver mata.


2014/11/26

Te amo e ponto final

- Você me ama?
- É você quem está indo embora.


Um tiro no meu peito. Tua ausência deixou um rombo no meu peito. Derrubou-me. Doeu… Passou. Voltou como simples saudades. Como se fosse possível encaixar simplicidade na saudade...
Dormi antes dos trinta minutos de filme. Sei que você e esse teu culto por filmes franceses ("por mais que não sejam mais tão vanguardistas, originais ou encantadores, destruidores, comparados aos de trinta ou quarenta anos atrás", como você dizia) odiavam quando eu fazia isto, dormir no meio da sessão.
Cê fazia questão de assistir atentamente para captar, em meio a possíveis falhas, algo para que pudesse ser citado depois como algo típico de tal artista. “Isso é muito Garrel”, disse uma vez enquanto eu caía no sono durante não me lembro qual filme, e nunca soube se era do pai ou do filho (ou do avô?) que você falava. Aliás, ouvia tal nome e não fazia ideia do que se tratava, até que resolvi afogar a saudade em coisas que você gostava.
Justamente por isto, essa tua paixão, preferia não ver filmes contigo. Não era minha área. Não era. Agora é, acredita? Depois que você se mudou e não mais retornou minhas ligações, mensagens, cartas, indiretas etc, decidi guardar o que sentia por você numa caixa, onde encontrei aquela lista de heartbreaking movies que você tinha me dado mesmo sabendo que cinema não era meu forte. Ao lembrar do tanto que falava desses filmes, resolvemos, eu e meu coração destroçado (“oh, broken hearted hoover fixer suckergirl), riscar os itens dessa lista aos poucos. Não vou te dar o prazer de te falar como fiquei no final, Elise, mas você deve suspeitar.
Na tentativa de me convencer a entrar no navio Cinefilia, antes mesmo da tal lista, quando ainda estávamos juntos, quer dizer, daquele jeito que estávamos, toda sinopse de filme que você me indicava tinha alguma situação problemática, trágica ou qualquer outra coisa que pudesse destruir o coração tanto de personagens quanto da audiência. Eita masoquismo desgraçado, hein...

“Cara super galã nesse filme e você capotada, roncando”, argumentou você, como se os traços físicos “belos” de alguém fossem me manter acordada. Aquele cara era só físico, fazia sempre a mesma cara em cena. Versão masculina de Seydoux, Browning, Stewart e cia. Você ainda exalta a Seydoux, será? Preguiça dessa mulher fazendo aquela adolescente apática. O que lembro hoje do dia em que vi contigo tal filme, que só captei diálogos interessantes pra serem guardados no meu caderno de frases depois, na segunda vez que o assisti, era você largado no canto oposto ao meu, com uma das pernas sobre o braço do sofá, mexendo na barba. Aliás, ainda tem problemas pra fazê-la crescer? Conseguiu vencer tua ansiedade? Eu não estava ali, parecia, eram só você e o filme. Acho que foi por isto que acabei capotando nos braços de Morfeu, me senti abandonada. Quer dizer, pensei isso até você, que até então estava com a cabeça apontada pra direita, mudar de lado, e repousar seu cofre de pensamentos sobre a minha coxa, como se eu fosse um travesseiro. Ah, como quis ser teu repouso. Por muito tempo. Muito tempo. Mas tempo é relativo, né? Naquela época, quando partiste, foram tempos pra te esquecer, digo, esquecer que te amava, esquecer que desejava tua presença eternamente. Pra sempre, quem sabe. Nah… Hoje percebo que, observando a situação de longe, muito longe, nem foi tão demorado assim superar tua ida. Consegui, porém, superar apenas tua ida, não tuas marcas em mim. Cortes fundos na alma.

Parabéns, graças a tua ausência, aos poucos, me transformei cinéfila. Muitas horas de filmes em casa, sozinha. Demorei pra entender que as maratonas eram pra preencher a falta que você me fazia.
Depois de tanto tempo afinal, percebi o quão você era sádico para relacionamentos. Reais ou representativos. Pra você, “a vida imita a Arte” é quase uma filosofia de vida. O contrário também. Gostava de se enxergar filmes, músicas, séries, pixações, pinturas etc etc. Parece que você só existia quando se via em outra coisa.

Um tiro no meu peito. Tua ausência deixou um rombo no meu peito. Derrubou-me. Doeu… Passou?

Não sei se você ainda lembra de mim como uma pessoa que esteve na tua vida, no teu coração, na tua cabeça, por um longo tempo ou apenas tem cravada na mente a recordação de uma pessoa que não quer reencontrar. Mas, saiba, ainda te amo. Não aquele amor que a gente costumava definir, como era mesmo? Nem lembro mais. Não que não tenha sido importante, a definição ou o sentimento em si, mas o espaço que tua ausência criou foi se ocupando aos poucos com novos vícios, novas distrações, paixões, o que seja. Ainda te amo, mas te amo pelo o quê você era (não posso te amar pelo que é hoje, pois não sei), pelo bem que me fez, pelas experiências que vivemos juntos, pelo encanto dos teus olhos, do teu carinho, do silêncio, que ainda me visita de vez em quando mostrando que os pontos no meu peito podem estar a um encontro de romper, explodir, e deixar sangrar novamente tudo. Te amo e...
Não, não tente me encontrar, stop!, não existo mais. Aquela pessoa que dormia, no sofá, no cinema, onde fosse, ao teu lado só existe em lembranças, mas você talvez você consiga abrir meu peito e encontrá-la, resgatá-la, ou reproduzi-la num conto, num filme.

2014/11/08

Porcelana: Cicatrizes



Entrou no banheiro para tomar banho sozinho. Ela, que ansiosamente respondeu que não queria entrar junto com ele no box, ficou deitada, reflexiva. Suas costas e seu peito estavam encharcados de suor, tanto dele quanto dela. Nas paredes, azulejos, alguns deles quebrados, bege com flores desenhadas em marrom. O chuveiro, de ferro, enferrujado, parecia que soltaria café ao invés de água. Postou-se no box, abriu a torneira sem medo e foi atingido por uma enxurrada de água gelada que rapidamente esquentou, sem dar tempo para fugas ou grunhidos de susto. Sorridente, não tinha tempo para temer temperaturas, estava bem demais para se preocupar com isso. Água batendo no pescoço, encarava o chão, refletindo sobre o que aconteceu. A mulher.
Logo ela, que parecia apenas mais uma pessoa com que cruzaria nos corredores da cidade, dava a impressão desproposital de que marcaria sua pele, não, sua carne, sua alma, com ferro quente.
De olhos fechados, transportado a um êxtase relaxante, sorrindo contra a água, não percebeu que a moça entrara no banheiro e começara a se despir para entrar com ele. Era a primeira vez que os dois corpos nus se viam longe da escuridão. Antes, naquele quarto, ela disse, quando começaram a tirar as roupas:
- Fecha a cortina, apaga a luz, não quero te ver, quero te sentir.
Mas agora, dentro do banheiro, conheciam as formas físicas dos corpos a olho nu, corpos nus.
Abraçou-se por trás, passando a mão em seus peitos e acariciando a pele e os pelos. estacionou próxima ao coração e sentiu uma diferença na pele do rapaz. Duas, havia duas linhas. Fez com ele ficasse de frente para ela e, alternando a visão entre a marca e os olhos dele, perguntando sem palavras o que seria aquilo.
- Foi assim que terminou - passando os dedos sobre suas duas cicatrizes paralelas no peito. Com a unha, traçou uma linha cortando as duas marcas, de modo que se formasse a primeira letra de seu nome.
Essa era uma marca que ele gostaria de ter em seu peito, em sua vida: o nome dela, a vida dela.
Então foi a vez da moça mostrar sua cicatriz tangível, entre tantas outras marcadas apenas na memória. Olhou para o próprio ventre e o rapaz logo acompanhou o movimento. Um corte horizontal na barriga. Seus olhos miravam o chão, carregados de lágrimas. Invadida por uma melancolia trazida para aquele banheiro pelas memórias cortantes de uma vida que não existia mais, conseguiu desentalar sua garganta, repleta de saudades, apenas para dizer:
- Dói lembrar - chorou, encostando-se na parede e escondendo o rosto nas mãos.
O semblante do rapaz foi tomado pela angústia de não saber o que feria a moça ali, naquela suíte de hotel. A fraqueza por não saber como tirar a tristeza dali reforçava como, às vezes, as pessoas são incapazes de ajudar. A falta de intimidade entre os dois, talvez, impedia que ele forçasse sua alma para tirar algum palpite, alguma resposta, para resolver o problema, a fuga das lágrimas. Queria agarrá-la pelos braços e gritar “para!” até que cessassem as comportas de choro. Cascatas. Soluços.
Não demorou muito para que ela se sentasse no chão e ele imitasse o movimento. Desligou o chuveiro. Sentados lado a lado, sabiam o que aconteceria. Sem uma palavra sequer, entenderam a origem daquela angústia. Os traumas poderiam aniquilar tudo construído pelos dois para os dois até ali.

2014/10/29

Lonely People 7

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A moça não conseguiu mais falar e, através de seu olhar, deu espaço para que o rapaz dissesse algo, ainda de longe:
- Como se eu não fosse perdido também. Você sabe que sou. Quero continuar me perdendo, mas em você. Eu quero me afundar, mas em você, em nossos abismos. Quero poder me afundar no teu colo, mesmo que você não tenha força suficiente pra suportar meu peso emocional, assim como eu não seria capaz de aguentar tua imensidão, e que você também possa se afundar aqui.
Levantou-se e ficou encostado na janela ao lado da moça, que respondeu, após ser fuzilada com um sorriso simultaneamente tímido e magnético:
- Eu faria o possível pra te impedir de se afogar nas merdas da vida, por mais que eu não seja uma boa nadadora.
- Nem sei nadar mesmo… A gente talvez precise de paciência, talvez esse trecho esburacado da nossa estrada logo termine.
- Ou talvez a estrada logo termine.
- Mas… - Logo se calou, absorvendo enfim o que a moça acabara de dizer, deu um longo respiro e continuou: - Se não seguirmos em frente, nunca saberemos se a estrada dura mais um quilômetro ou é interminável.
- Tudo tem fim...
- Calma, não era esse o termo, mas, sim, claro, a gente sabe que tudo acaba… Sei lá, ela pode durar mais quatrocentos e doze milhões de quilômetros.
A turista saiu da janela, sentou-se na cama e, apertando o peito contra as coxas, reclamou:
- Minha barriga… dói.
Imediatamente, ele se postou a seu lado e repousou uma das mãos nas costas dela, acariciando-a gentilmente.
- Gastrite?
- Talvez, não sei. Continua o que cê tava dizendo...
Achou que poderia soar um tanto indelicado ignorar sua dor para falar sobre estradas e naufrágios, mas percebeu, através novamente dos olhares da moça, que ela não se importava.
- Tá... Esse nosso pessimismo realista sobre relacionamentos é algo bom, sabe? A gente tá muito consciente que vai acabar e, que, quando isso acontecer, vai doer.

2014/10/25

Não foi assim que começou (Pretensão)

Terça-feira. 18h e alguma coisa. Sms. “Chega no Pizza da Vicente”. Pedala. Encontra.

Sentou-se na escadaria com amigos e desconhecidos e demorou para perceber quem estava ali, a pouco mais de cinco metros, sentada em uma mesa com mais duas moças, colegas de faculdade, mesmo lugar onde os que estavam com ele estudavam. A moça das “pinturas transcendentais”, definição dele. Com um daqueles casacos dos Andes, marrom, cabelos castanhos-quase-loiros, todo bagunçado num coque, debruçada sobre a mesa e algumas folhas de papel.
Prestava atenção na conversa dos amigos, mas não tirava os olhos dela. Conversava, mas se afundando cada vez mais naqueles castanhos. Concentrada em sua reunião, sorria às colegas quando tirava os olhos dos papéis. Numa dessas, avistou o rapaz de camisa azul, tecido diferente, cabelo crespo curto e barba. Nunca o vira antes, mas estranhou que o forasteiro estivesse com o grupo que há pouco conversava sobre a exposição em cartaz na faculdade com ela e suas amigas.

O amigo que sabia do encanto distante não demorou a perceber que ele estava um tanto concentrado em observar a moça. Quando enfim desviou o olhar da hipnotista desproposital, viu que o antigo amigo o encarava com um sorrisinho malicioso como se dizendo “eu sei o que tá te deixando lesado”. Realmente estava. Sentando perto de umas plantas, nem ligava que as folhas lhe cutucassem as costas.


Sexta-feira. Pouco depois das 19h. Primaveril. Mureta. Conversas. Bebidas. Ela.
Único, entre as pessoas próximas, a conhecer a música que começou tocar, empolgou-se sozinho, enquanto amigos negociavam algo sobre a viagem que fariam no dia seguinte. Quando surgiu a primeira frase, os dois, a moça e ele, cada um em seu canto, cantaram juntos. Cantaram juntos se encarando num cruzamento de olhares sorridentes. Rapidamente, desviaram timidamente os olhos e continuaram a curtir a música sozinhos. "Será que ela está de olho em mim?", questionou-se o rapaz, logo sendo interrompido por si mesmo: "Olha só pra tua cara, babaca, nunca que uma mulher dessas ia te dar atenção." Atingira a fase do platonismo em que surgem os pensamentos auto-destrutivos e que julgavam moças como aquela serem inalcançáveis e perfeitas demais para sua bagunça.
Ainda pouco enturmado, quando o amigo antigo precisou sair, ficou quieto na roda, encarando a moça e a lata de cerveja, tanto a dela quanto a sua. 
Não soube dizer se era o mesmo casaco, mas era muito parecido com o que ela usara há três dias. "Só encontro essa mulher quanto tô com minhas piores roupas", reclamou para si, tentando limpar a mancha de origem desconhecida em sua camiseta cinza de pijama. Casual friday para ele no trabalho era ir vestindo suas camisetas que usava pra dormir, ninguém ligava, mas gostaria de usar algo mais "charmoso" quando encontrasse a moça. Alguma coisa listrada com botões talvez.
- Cê já foi ver a exposição lá em cima? Vamo lá?
Encarava as pinturas em guache talvez, não entendia de tinturas e esses materiais das Artes Visuais, nos papeis amassados. Gostou mais da verde por lembra-lo dos outros trabalhos da moça. Aqueles transcendentais, naturais, retratos perfeitamente imperfeitos do ser humano. Porque, dizia ele, as pessoas são assim como esses desenhos, várias linhas que fogem de si mesmas, confundem-se, fundem-se. O rosto humano pode até ter forma concisa, mas o interior, era isso que ele comparava às pinturas, é instável, bagunçado, riscado.
- A gente vai na Pizza, tá? Vocês também – anunciou a amiga de Irene, que passava na frente do rapaz, que, com a proximidade maior, estava mais magnetizado pelo encanto da mulher.
Um amigo havia sugerido Bec depois que a festa ali terminasse, mas, quando ouviu que a moça iria ao mesmo lugar onde estiveram na terça, quis tentar convencer seu grupo a mudar de planos. Não conseguiu. Deu um último olhar para ela, que foi em direção ao carro estacionado da amiga.
Encarando o chão do Parceria, enquanto os amigos mastigavam x-saladas e pastéis, sua mente estava ainda na cena da moça, quando o céu já havia escurecido, com a luz do celular iluminado seu sério rosto. Mesmo àquela hora, ainda era possível, através dos lábios semi-cerrados, ver os dentes responsáveis por disparos tranquilizantes, encantadores. Não pode esquecer dos olhos...
- É, cara, eu fiquei sabendo... Que você falou de mim pra umas pessoas aí...
- Quem? A do conto da casa amarela?
- Não, calma... Você falou para uma sobre mim...
- Ah, sim... Faz tempo, sobre a parada no Peppers?
- Não... O que? Eita, então tem mais uma na parada.
- Nomes, por favor. – Interrompeu o de camisa branca.
- É, parem de falar em códigos. – Acrescentou o de cabelo comprido. 
- Mas assim que é legal, se fosse só citar os nomes de quem fez isso ou aquilo, não teria graça.
- Cês são retardados.
Separaram-se as duplas, uma falando sobre videogames; outra, paixões.
O jogo de adivinhação e ausência de nomes prosseguiu até que os dois conseguissem estabelecer personagens e histórias. Preferiam ignorar nomes e utilizar adjetivos, referências, metáforas etc para deixar o diálogo mais leve. Às vezes, contavam histórias enormes e se esqueciam de batizar personagens.
- Quando olho pra ela - disse o antigo -, parece que eu fico nu, mas não no sentido sexual. É mais como se eu estive ali, uma criança perdida no meio da multidão, vulnerável.
Conversaram por mais um tempo, despediram-se, separaram. Vic começou a pedalar, ainda pensando em Irene, parou na XV para fotografar o calçadão, ainda pensando em Irene, passou por perto da Vicente, querendo encontrar Irene, chegou em casa e começou a escrever sobre Irene. Terminou e percebeu que fora pretensioso demais ao dizer esperançosamente no texto que haveriam outros encontros ao acaso para que eles enfim pudessem começar um romance.
Pensava na troca de olhares, que ele desejava acreditar que haviam sido recíprocos. Queria que ela tivesse o encarado não apenas como mais um estranho. Queria que ela fosse atingida pela reciprocidade e encontrasse algo nele que a encantasse e a inspirasse a pintar retratos, assim como ela o inspirava a escrever.

"Quem não desce a ribeira / não chega no mar". Quem não derruba a barreira, não chega ao amar.

2014/10/23

Pra entrar na dança

Sem citar propostas ou casos de corrupção, uma coisa que me incomoda nessa "arena salve-se quem puder" entre partidários proselitistas (ressaltando a redundância proveniente do radicalismo) durante o período eleitoral é o macartismo disfarçado em muita gente. Mas um "medo dos comunistas" um tanto quanto contraditório. O argumento pra muitas pessoas não votarem no PT seria "o golpe comunista no Brasil', porém, por diálogos que presenciei, percebo que algumas dessas mesmas pessoas são a favor do retorno do regime militar. Mas, ué, qual a diferença, sem jogar na mesa o regime político, esquerda ou direita, entre o golpe comunista e o golpe militar? Ambos, tanto no Brasil quanto em Cuba, Coreia do Norte etc, foram/são de iniciativa de golpes militares. Golpes. Militares. O problema não é privatizar até a mãe ou fazer rodízio de Iphone com os colegas de ocupa, a treta é impor forçosa e violentamente um estilo de vida. Pior ainda se essas coisas forem leis que não beneficiam todxs, e até prejudicam os menos favorecidos.
"Ah, mas você não viveu naquela época." Não mesmo, acho que eu, do jeito que sou, não sobreviveria muito tempo, mas isso não me importa, vivo o agora, estou vivendo o 2014, 1964 já era, e espero que esse período em que "ou cê faz isso ou vai pra fogueira" continue distante, sem saudades de ninguém.
Eu não queria votar no PT, entre os dois partidos do dia 26, pois queria um que prezasse ainda mais pelo social perante o capital. Eu voto no PT, entre outras coisas, porque essa mulher consegue provar que não precisa ser "macho" pra ser presidente e aguentar a chuva de conspirações e ofensas, rompendo com essa porcaria de sexismo que nunca deveria ter surgido. Essa imagem de homem no poder já deu, né? Não me importo se for ela ou ele, só quero que faça algo decente (para todxs). Eu não votaria novamente no PSDB (já votei antes e agora me vendi ao sistema comunista, porque o salário é melhor, consegui até comprar uma passagem pra Miami), porque, não pensando tanto em possível retrocesso (extremo) explorado por tantxs, pois mudanças radicais levam tempo, e, durante o processo, alguma revolução contrária surgiria, mas, minha treta é com o fundamento de valorização do capital. Se isto é importante pra você, se a grana realmente é o que te move, aí a gente vê que democracia talvez seja mais utópica que esse tal de socialismo, porque interesses entram em conflito na hora de escolher "representante do povo". O diñero pode não ser o combustível de parte da sociedade. O povo da classe AA+ não é o mesmo povo da classe Z-. A "valorização do capital" perante o social mostra os níveis de superficialidade e egoísmo ao qual chegamos. O bolso precisa ser profundo pra comprar o "item do momento", enquanto, pra muita gente, o intelecto mal mede meio metro. "Se você não tem dinheiro pra comprar também, lamba meus sapatos e me inveje" é o pensamento que alimenta muitas cabecinhas.
"Vai pra Cuba então"... Melhor argumento de sempre Joga o Fidel no meio também. Dinheiro é importante pra mim, sim (como é que vou comprar minhas roupinhas pra mostrar pras vocês? - descarto a possibilidade de roubar, porque, oras, estaria ferrando outras pessoas, incluindo funcionárixs da loja que dividem a lotação comigo), mas não é que mais me importa. Não deveria ser pra ninguém. Acho bastante difícil uma pessoa ser de extrema-extrema esquerda e viver numa sociedade que respira e injeta capital diária e freneticamente, um vício mortal. É preciso (saber viver e) se adequar ao meio sem que os ideais sejam feridos e convertidos.
Não quero nem posso converter ideais e preferências políticas das pessoas, isso seguiria algo que me incomoda: Ditar comportamentos. Se você quer privatizar a bunda, vai nessa. Se quer dividir o lanche com o cara que dorme na marquise ao lado do teu prédio, go on. Se quer usar a camiseta do Che tomando sorvete no shopping, que seja. Só não seja igual de um jeito que te deixe infeliz. Só não vote em determinado candidatx, porque o vizinho da prima que trabalha com a mulher padre pediu ou pois "falaram que outrx candidatx é/fez tal coisa" (se é ou fez, pesquise, averigue e veja se esse passado é tão condenatório assim pra você). Esse "ovelhismo" de existir, ser, pensar, tudo igual: Não. Igualdade necessita existir em Direitos Humanos, sem hierarquia de privilégios sociais. Se eu almoço sanduíche natural e você, bisteca de porco ovo ou risoto de escargot com essência de fadas do Turcomenistão, continuemos assim, cada ser na sua, sem querer interferir nas vontades pessoais alheias. Porém, tratando-se de política, fica meio difícil pensar individualmente, já que você poderia ser a favor de 500 km de ciclovias na cidade e eu, da distribuição de carros sedãs pra todo mundo. Sacrifícios ideológicos, pra viver nesse mundão louco, são necessários, desde que sacrifícios humanos e animais não sejam obrigatórios pra que alguém se beneficie.
Enfim, antes de sair atirando que "ditadura comunista" é coisa do capeta (nada contra Lúcifer) lembre que isso só funciona erroneamente devido ao regime militar. Militar, lembra? Ditadura Militar. Brasil, de 1964 a 1985? AI-5, censura etc. Assim como aqueles 21 anos que você sente falta ("Ah, naquele tempo era tudo melhor"), o problema dos governos comunistas é a imposição através de violência. Tortura etc. "Descer o cacete em quem não obedecer ou pensar diferente", que zoado. O termo "partido de direita" me conservadorismo conservadorismo, que traz um monte preconceitos, um dos pontos iniciais de toda essa bizarrice eleitoral encontradas nas redes sociais. A xenofobia observada nas últimas semanas chega a doer os olhos e a alma. Talvez já existisse nessa proporção atual, mas a internet, que nos trouxe tanta coisa boa, deu voz a essa escória maldita, ampliando pensamentos nojentos que são curtidos e compartilhados pelo Brasil todo. Se você vota no PSDB pra "expulsar a imundície nordestina da 'minha terra' e fazer vagabundo parar de mamar nas tetas das bolsas-esmolas", porra, que pira mais errada. Creio, e realmente espero, que não seja essa a intenção de nenhum partido. Coisas assim não deveriam existir na cabeça de ninguém.
"Mas e a meritocracia? Não tem que dar o peixe..." Cê realmente acha que quem nasceu na merda tem as mesmas oportunidades que alguém que nasceu em berço de diamantes? Uma pessoa negra entra num shopping e, na maioria dos casos, é alvo de desconfiança e medo pelo simples motivo de ser assim. Cor, descendência, classe, roupa, orientação sexual e de gênero etc etc etc não são sinônimo sde maldade. O que faz uma pessoa ser má é sua própria cabeça.
"Essa esquerda-caviar-classe-média só sabe reclamar." Ainda bem que alguém faz isso. E não são poucos (que continuem surgindo mais). Reclamo, sim. Me importo tanto com uma pessoa que cria sozinha 3 crianças e leva duas horas pra chegar ao trabalho quanto com aquela que chefia uma multinacional e joga tênis quatro vezes por semana num iate, porque, assim, se todo mundo estiver bem, o ciclo da sociedade vai rodar sem prejudicar ninguém nem eu.
Por fim, definitivamente, só me formei Técnico em Administração e estou me graduando bacharel em Jornalismo graças aos programas educacionais desse "partido que implantará a ditadura comunista no Brasil". Não que eu fosse viver sob a asa partidária eternamente, definir meus próximos votos por isso, "me vender" por isso, mas, coincidentemente, nasci numa época em que filhxs de mulheres afrodescendentes, solteiras e analfabetas têm a oportunidade de crescer sem correntes, orgulhar quem merece e entrar nas universidades "pra roubar lugares de seres 'mais inteligentes'".

2014/10/22

Porcelana: Crueza sentimental e carnal

Estava decidida a comprar uma garrafa de qualquer coisa que tivesse teor alcoólico superior a 20%, afundar-se em seu sofá, sozinha, e vomitar tudo aquilo que lhe incomodava – o que não era pouco -, jogar tudo aquilo pra fora, fosse através de lágrimas ou de suas telas . Entrou na loja, estranhou o ambiente, que passara por reforma recentemente, e foi rumo à prateleira de bebidas. Muitas opções.

Estavam xingando a lentidão de um filme que a moça conhecia, gostava e assistira duzentas mil vezes. Ela quis logo iniciar uma discussão com as desconhecidas, mas alguém fez isso antes. Havia um rapaz com as duas moças, deviam ser amigos, namorados, qualquer coisa íntima, porque ao mesmo tempo em que se xingavam, sorriam e riam. O trio se sentou numa mesa da área externa da loja para comer. Ainda vagando pelos corredores do lugar, decidiu parar para comer antes de morrer em seu sofá e acordar dois dias depois. Ela queria conversar com os cinéfilos. Para sua alegria, a única mesa vazia era ao lado deles. Não teve dificuldade para puxar conversa e, felizmente, o grupo a recepcionou bem. Em menos de dez minutos, já dividia a mesma mesa que as duas moças, que eram irmãs, e o rapaz que encantou a moça e não “pertencia” a nenhuma delas. Os dois, sem que percebessem, começaram a demonstrar afinidade, vontade e proximidade. As gêmeas precisavam partir. Ficaram os dois na mesa, agora sem falar de cinema ou outras coisas, começaram a conversar sobre suas vidas, sobre como era diferente – e bonito - uma morena com sardas; sobre uma pessoa de uma família financeiramente privilegiada que não se importava com esse status e construía sua vida, sua arte, da forma que bem quisesse, morando de aluguel num apartamento pequeno e barato; sobre um cara que, por fora, parecia ser grosseiro - a cara desgastada por noites mal dormidas e a barba reforçavam essa ideia-, mas, assim que soltava as primeiras palavras, provava-se um tonel de carinho e doçura. Não tinha mais volta. Ou começavam a expressar a vontade recíproca ou... Estavam perdidos, tinham pressa em jogar tudo pra fora tão rápido quanto surgiu o interesse, estavam fadados ao desejo de se completarem com palavras, sorrisos, carinhos – tanto verbais quanto físicos, beijos, sexo...
No impulso, sem muito diálogo após um toque de mãos e sorrisos gritantemente silenciosos, foram a um hotel da região. Entraram no quarto e logo se deitaram. A força impulsiva então parecia que tinha enfraquecido. Começar a conversar mais. Agora, sobre frustrações. Ela não tinha muitos problemas para abrir sua caixa de problemas, ainda mais para quem, em pouco tempo, já transpirava confiança, e relatou sobre o fato de ter começado a gostar de uma amiga em uma forma romântica, que isso serviu para que a pessoa se afastasse, desperdiçando toda a amizade, que permaneceria viva se não houvesse no amor a tal da reciprocidade. Isso a derrubou ainda mais, além dos problemas que já a machucavam desde..., mas estes ela preferiu poupar, pois eram pesados demais e poderiam afastar o rapaz, então o silêncio cerrou os lábios da moça, que terminavam unidos em uma linhazinha de cada lado, como se ali fossem destinadas a receber palavras que o único lápis compatível seriam os beijos de alguém. No desconforto do vácuo, iniciou ele seu relato sobre a pessoa que cagou não-literalmente em sua cara, ferrou sua vida de diversas maneiras e ainda quis sair como a vítima da história. Não se estendeu muito no caso, pois foi invadido por uma raiva traumática. Parecia que as cicatrizes - tanto emotivas quanto físicas - haviam começado a sangrar novamente. Ele não queria sentir coisas ruins ao lado dela, a existência dessa mulher repelia tudo isso. Não terminou de contar a história.

2014/10/07

Aquele jogo de cartas

- E como vai a…? - questionou, querendo saber o que ocorrera no último mês, período sabe se lá porque em que se distanciaram.
Suspirou um “haha” engasgado:
- É… Ela… Também queria saber como ela está, mas… A gente, ha… Uma bagunça! Tudo… - respondeu, gesticulando confusão. Sabia que era a vez de seu monólogo, portanto não se apressou em tentar traduzir para uma linguagem que a amiga compreendesse sobre o que acontecia com…: Eu não sei mais. Pra mim, tava tudo bem, mas aí ela… Quer dizer, eu também sou assim, de criar furacões a partir do nada, mas aparentemente não havia indícios de ventania… Depois que a gente  um mês sem se falar e então se entendeu, pelo menos achei que tínhamos nos acertado enfim, ela tinha pedido uma coi… Duas coisas. Que não queria acordos, ok, de acordo, e que eu precisaria ter paciência.
- Como se você não tivesse muita! Essa guria…
- Ô, nem venha com esses teus ataques de ciúme.
- Que ciúme, o que, tá loco? Quero mais é que ela se foda... com você, claro, se se entenderem de vez.
- Eu sei que você não é muito chegada na… Mas…
- Mas nada, meu, essa guria só te estraga, só te faz mal.
- Como se eu - apontando os dedos indicadores para si mesmo como se fossem flechas de neon - eu! fosse a melhor pessoa, a mais boazinha entre todas as boas pessoas no Fórum Internacional da Bondade.
- Tá, mas o que você fez de mal pra ela então?
- Tirando o fato de ter surgido no caminho dela e insistido que deveria continuar existindo em sua vida? Acho que, além disso, o que eu fiz de merda foi exigir pela presença dela. Eu não exigi muito, poxa, ela sabe, everybody knows, "no one knows" "everybody hurts", que gosto de desaparecer por um tempo, então não posso exigir presença contínua dela nem de ninguém. Eu quero sumir. Também quero que ela suma. Mas não em definitivo, sabe? Não de um jeito que machuque. Não que eu esteja em pedaços agora, mas, se continuar assim, não demora muito pra…
- Esse é o problema, essas pequenas magoazinhas acumuladas. Cê sabe que você explode uma hora e ninguém te quer por perto desse jeito, acho que nem ela ia querer.
- Pelo que sei, ela é tão perturbada quanto eu, mas do jeito dela.
- O que cê pretende fazer?
- Sei que se ela quiser continuar emprestando livros na faculdade, vai precisar de mim. Mas não quero obrigar, fazer com que ela precise de mim, sabe? Apelar, não. Apenas queria que... Eu também, não tenho jeito… Desde… Sabia que seria problema, uma desgraça única, mas antes insistia em não enxergar e tentar mudar. Agora eu sei, agora vejo bem aqui na minha cara: eu + ela = nós = problema.
- Esse joguinho de vocês, não consigo entender.
- Nem tente, sentei na mesa pra jogar sem ler o manual, ninguém me passou as regras. Acho que não tem vencedor no final.

2014/10/06

Porcelana: Pressa/Fadado ao sonho

Começou a correr, fugindo, e logo o rapaz foi atrás, tentando alcançá-la, mas as pernas da moça queimava um combustível potentíssimo - traumas. Antes do primeiro cruzamento, ela parou, esperou que ele a alcançasse. Ofegante e com algumas lágrimas deslizando em seu rosto, enquanto o moço repousava as costas num poste, ela disse, encarando o chão, "I've never loved", agarrou as duas mãos dele com ansiedade, deu-lhe um beijo, repleto de vontade, movimentos e intensidade, desvincilhou-se daquele corpo quente e correu novamente. Virou à esquerda. Assim que ele repetiu o movimento, que mal conseguira normalizar a respiração durante a recente parada, trombou com uma senhora cheia de sacolas e um garoto andando com muletas. Uma bela tragédia, envolver-se em um acidente com vulneráveis e ver a melhor pessoa que conheceu nos últimos 24 anos se distanciando. Correndo, fugindo, ao mesmo tempo em que chorava, não olhou pra trás.
Ajudou o menino a se levantar, recolheu as sacolas e pediu quinhentas dúzias de desculpas. A mulher já tinha sumido, ele acelerou o passo, mas desistiu de encontrá-la ao chegar no primeiro cruzamento, por não enxergar rastro algum dela. Sentou-se no meio fio e ficou ali, pensando no que fazer, em como encontrar a moça. Não sabia. Por mais que tivessem ficado juntos tão pouco tempo, comparado aos seus outros relacionamentos amorosos, afetivos, como preferir rotular; foi o mais magnético, puro, suave e incisivo. Um negócio que espremeu seu coração e extraiu coisas boas, o melhor de si, que ele não sabia afirmar se já se sentira assim. Parece que a anestesia para todas as suas dores estavam nele mesmo, mas só ela, a fugitiva, tinha a seringa compatível para suas veias tão machucadas por traumas e remorsos ao invés de sangue. Por mais que tivessem ficado juntos tão pouco tempo, comparado aos seus outros relacionamentos-whatever, era suficiente pra saber que desejava passar mais, muito mais, dias ao seu lado. Aparentemente, por conta da fuga, parecia não ser o que ela pretendia, mas ele não sabia...
Restava a ele deixá-la viva em seus sonhos. “Quem deixa ir tem pra sempre”, pensou, tentando se acostumar a recente perda. O que ele teria, enquanto vivesse, por mais quinze segundos ou meio século, seria a lembrança daquele olhar, daquela pele, daquele toque, daquela cicatriz, daqueles beijos, daquela tristeza por não poder mais repetir tudo. Passou mais de quinze minutos encarando o asfalto e brincando com cinco Marias, enquanto sua mente mastigava um bolo de chocolate com cobertura de amendoim, sua definição para algo perfeito. O doce, neste caso, era a lembrança de suas últimas horas. Dizia “perfeito”, mesmo acreditando que isso não existia, era mais uma palavra para descrever que algo o fazia bem. E a moça o fazia. Fez. Correu.
Levantou-se. Começou a andar. Entrou na rua de casa e seguiu, sumiu em seu próprio limbo mental para tentar não se afundar novamente naquela que desapareceu sem deixar nome, endereço ou coração. Acostumado a afundar-se em coisas ruins, anestesiou-se por enfim entrar num mar tranquilo, mas logo veio o sol, trazendo a seca, e o deixando rastejando na terra árida. Tudo seria um talvez dali em diante, ele não saberia se poderia se entregar a outro alguém, pois a moça poderia simplesmente ressurgir, não sabendo ele como, trazendo tudo de bom que viveram naquelas quatro horas juntos - vaga esperança. Porém, ele não queria se prender a esta possibilidade, era uma das inúmeras que poderiam atingir sua existência pelo resto de sua vida.
Seguiu sem olhar para trás. Antes fossem memórias ruins, antigas companheiras, que o fariam logo esquecer a moça, no entanto, eram as melhores que o invadiam a cada novo passo. O que poderia acalmá-lo, pelo contrário, fez surgir-lhe um incomodo, um vazio. Olhos abertos ou fechados, a imagem do rosto da moça estava em qualquer lugar aonde seus olhos mirassem. Aquela mulher, corrigindo, a memória do que viveu com ela serviriam de porto para repousar durante tormentas. Mas o desespero do sumiço o atordoava. Não sabia se queria deixar a lembrança ocupar um quarto de sua hospedagem mental. Queria. Talvez fosse demorar algum tempo para se acostumar a isso, à ausência da presença daquela com gostaria de compartilhar outras experiências pelo resto de seus dias, mas foram necessários apenas alguns minutos para suprir esse vazio. Instantes após entrar em casa...

2014/10/02

Barulho, bordô, botinhas e boom

E

A primeira poltrona da fileira, partindo do corredor em direção à parede, ficou com a mochila daquele que queria fumar um cigarro antes do show. A segunda, vazia, porém, estava reservada ao amigo do primeiro. A terceira, já era ocupada pelo outro amigo, que, com as costas quase na horizontal, encarava o teto do teatro. Os demais quatro espaços permaneceram vazios até que, logo após os dois primeiros que voltaram se sentarem, um grupo de mulheres chegou pedindo licença pra passar.

Iguais

O terceiro achou que as moças estavam junto com seus amigos, tanto que cumprimentou com um singelo “Olá” a primeira que entrou na fileira. A moça retribuiu a saudação, mas as outras, mais tímidas, não replicaram o ato. Conforme passando por ele, o rapaz da terceira poltrona encarou uma a uma disfarçadamente. Morenas, franja, coque, bota, skinny jeans, batom. A visão do rapaz começou a doer por observá-las com o canto de olho, mas continuava. Como se combinando, cada uma carregava a cor bordô em algum canto. A simpática tinha um cachecol. A da quarta vaga, calça. Sexta, batom. Sétima, camisa. Encantou-se o terceiro pela ocupante da poltrona vizinha, sentada com seu pé direito, e a bota “última tendência” - usada também pelas outras da fileira, porém de modelos e marcas diferentes -, sobre o assento, ficando o joelho apontado para o céu.

Faroeste oriental

Terceiro sinal. As luzes se apagaram. A banda apareceu no palco. Começou o show. O setor da fileira E, onde estavam as quatro mulheres e os três homens, ficava, da visão dos músicos, a leste do palco. A primeira música, que também era a número um do álbum, foi para anestesiar a plateia, com exceção do terceiro rapaz, que dividia sua visão entre o palco, as luzes, os sons, e a moça ao seu lado, que estava incomodada pela lotação da fileira, mas ela era sempre assim, independentemente de quem estivesse ao seu lado, agorafóbica.

You look pretty beauty in red lights

Ele estava, ao menos desejava estar, flutuando naquelas luzes, queria ser aqueles raios verdes, vermelhos e azuis. Afundou-se na poltrona, enquanto ela, inclinada para frente, apoiava os cotovelos nas próprias coxas, como se para se aproximar do palco e absorver com maior eficiência as notas que saiam de lá. Surgindo do palco, atrás do baterista, um raio de luz vermelho se jogou sobre a plateia, atingindo principalmente a terceira poltrona da fileira E. A moça, que começou a acompanhar as luzes depois de sair do próprio corpo devido à osmose sonora, permitiu-se ser guiada pela iluminação e deixou sua visão ir de encontro ao rosto do rapaz, completamente vermelho, de olhos bem abertos e molhados. A moça achou que ele estivesse, mas de fato não estava chorando. Mas as luzes, tanto a que atingiu quanto a que saia dos olhos do rapaz, fizeram a moça se fixar ali por um tempo, pouco aliás, porém suficiente para ele perceber que era observado.

Desfiladeiro

Surgiu um implícito desconforto entre os dois. Individualmente, sabiam que estavam encantados pelo colega de fileira, mas não encontravam a uma resposta para expor isso. Cansado de estar sentado na mesma posição há tempo demais, cruzou a perna de maneira que sexistas afirmam ser de “mulherzinha”. He just don't give a shit. Por este movimento, fez com que algumas coisas que estavam em seu bolso caíssem no chão, embaixo do banco, mas nem percebeu, porque, ao cruzar a perna desatenciosamente, fez com seu pé direito batesse no pé esquerdo da moça, que cruzara as pernas da mesma maneira, contudo invertendo a perna que repousava sobre a outra. Pé com pé. Perceberam instantaneamente o encontro, mas deixaram assim, colados. Como se assim demonstrassem interesse.

Como ignorar uma pessoa simpática e efusiva

Saideira. Aplausos. Biz. Mais aplausos. Acendem-se as luzes. Fila pra sair. Já fora do teatro, na calçada, os três amigos comentavam sobre as novas músicas e o efeito semelhante ao de “Ára bátur” que algumas das canções recém-apresentadas possuíam, quando o terceiro ouviu seu nome pronunciado através de um grito estridente. Há cerca de dez metros, estava a amiga de uma fantasma dele que estava com um dos braços estendidos como se fosse um farol indicando que o rapaz deveria aportar ali e trocar saudações, palavras e saudades. Ele, transformado em uma pessoa mais coerente com seu interior, diferente daquela que existia na última vez que se cruzaram sob a escuridão da cidade, não sendo mais o tipo de pessoa que se obrigava a encarnar uma persona falsamente simpática perante as demais, apenas sorriu sem mostrar os dentes, levantando rapidamente as sobrancelhas. Queria ele evitar o constrangimento de uma possível reação da estranha que envolvesse aproximação, procurando qualquer coisa em outro lugar para se focar. A estranha desviou o olhar.

Au revoir, bordeux

Dialogando, ainda em frente ao teatro, sobre música local com os dois amigos, o rapaz da terceira poltrona encarava o chão, quando percebeu uma calça bordô se aproximar. A moça da quarta poltrona, reconhecendo os três rapazes que dividiram o mesmo setor da fileira E durante o show, apareceu com uma caneta preta e um celular em mãos, perguntando se era de alguém. O terceiro, surpreso por não ter percebido que deixara cair tais pertences, soltou um suspiro e um “muito obrigado” acompanhado um sorriso. A moça então respondeu com um “Imagina, ainda bem que te encontrei” e se foi. Ele acompanhou, com o olhar, a moça se distanciar com suas três amigas. Antes de atravessar a rua, ela disparou um último olhar, uma despedida, "foi bom te conhecer" ou coisa do tipo. Atingido pelos castanhos da moça, não teve reação além de um sorriso aberto. Logo os olhares se perderam na noite e se foram.

Isso destruirá o céu de Gizmo, o imperador negro


Hora depois, num bar de uma região noturna popular da cidade, estavam os três moços bebendo na rua e conversando sobre o quão assustador era o monstro com quem o rapaz na cena da lanchonete sonhara na cena da lanchonete em “Cidade dos Sonhos”. Foi quando o celular daquele que quase perdera seu telefone alertou o recebimento de uma mensagem. “Antes de devolver teu celular, peguei teu número. You look pretty beauty in red lights”. Tentando disfarçar a alegria que lhe invadira, sorriu sozinho, enquanto os outros dois falavam sobre os litros de vinho que tragaram na noite anterior, viu que no registro de chamadas realizadas havia o mesmo número que enviara a mensagem, e respondeu: “Desculpa por ter te chutado durante o show”. A conversa prosseguiu com “Não aceito desculpas via sms”. Ansioso, respondeu diretamente “Onde você está?” Com as três amigas do show e os namorados de duas delas, estava num bar novo, antes desconhecido por ela. “Não sei o nome, é do lado do antigo Chinaski”, respondeu a moça, que agora queria mais do que antes reencontrar o rapaz da terceira poltrona e chutar seu pé, pintá-lo de vermelho, assistir a outros shows, roubar sua caneta preta... Preferiu não responder, despediu-se rapidamente dos amigos e correu uma quadra inteira quase sem respirar. Virou a esquina, atravessou a rua e a viu, nas mesas externas do novo bar, a dona da calça roxa e do canhão de castanhos que havia no lugar de olhos, sentada, com as pernas cruzadas como quando se bateram os dois no teatro. Ainda encarando o celular, forçando que ele alertasse uma resposta do rapaz, foi interrompida pela amiga simpática, que perguntava se não era o rapaz do teatro se aproximando. Levantou-se. Apressou o passo. Ele também. Colidiram. Explodiram. Em sons. Em cores. Levitaram.

2014/10/01

Chuva e sorrisos


He films the clouds.
She changes the weather.
They become rain.

Ponto de ônibus lotado de pessoas se refugiando da chuva e a moça precisou pedir licença, enfiando-se entre estranhos para encontrar um lugar para si. Estava feliz. Depois de tempestades em sua cabeça, o sol surgiu e a deixou bem pela primeira vez em duas semanas. Costumava ir andando para a aula, mas, com aquela chuva, não havia condição de fazer sua caminhada. Achava futilidade pegar ônibus para não ficar nem cinco minutos e descer na terceira parada, mas, às vezes, futilidades eram necessárias. Tão feliz estava que não ligou que seu vestido azul marinho com linhas brancas quadriculadas, sua meia calça preta e seu sapato preto de salto baixo estavam completamente encharcados. Observava a rua e sorria encarando a água colidindo com o asfalto. À duas pessoas de distância, percebeu, com o canto de olho, que havia um rapaz a encarando, usando calça preta, tênis azul marinho escurecido devido à chuva, da mesma cor que o vestido da moça, camiseta branca, que, depois descobriu ser, na verdade, bege com um corvo estampado e uma mochila da mesma cor do calçado. Ignorou o estranho.
Ele não estava feliz, mas seria apenas deitar e dormir que voltaria a ficar bem. Porém, precisava resolver um assunto acadêmico antes de ir pra casa. Irritado de fome, emputeceu-se ao sair do trabalho e dar de cara com a chuva forte, que impossibilitaria a chance de ele fazer uma jornada para matar a saudade do caminho que tanto repetiu em quatro anos. Chegou ao ponto de ônibus querendo chutar todo mundo, mas logo viu uma moça chegando e o deixando anestesiado. Ignorou a raiva.
Exibindo um sorriso de dentes escondidos, a moça continuava a encarar as gotas de chuva atingindo o chão. Não ere esse o motivo, a tempestade, para ela sorrir, mas ela precisava mirar algo para despejar sua alegria. O rapaz estranhou aquilo tudo, mirou o outro lado da rua para ver se havia lá alguém para quem a estranha pudesse estar olhando. Ninguém. Sorriu e riu sozinho. As curvas daqueles lábios fizeram o rapaz derrapar, colidir contra o muro e cair morro abaixo.
Enfim, a moça desviou o olhar e o rapaz estranhou o ato. Só parou de olhar para o nada, enquanto seus olhos miravam o asfalto, quando o ônibus chegou. As duzentas pessoas no ponto entraram. Ele passou pela cobradora, pagando a passagem em moedas, e viu que a mulher que encarava a chuva sorridentemente havia se sentado em um bando próximo ao motorista, antes da catraca. Apesar da quantidade de gente que entrou no ônibus, não foi número suficiente para lotar o veículo.
O rapaz, ainda hipnotizado pela moça, apreensivo por faltar um ponto para descer, começou a se despedir mentalmente de “mais um amor platônico de ônibus”. Apertou o botão para sinalizar ao motorista que desceria no próximo ponto e sorriu. Rapidamente, a moça se levantara, pagara a passagem e parou ao lado do rapaz.
Desceram não só não mesma parada como seguiram para o mesmo lado.
Quando pensou em iniciar uma conversa com algo como “moça, você está me seguindo?”, demorou tempo demais e foi ela quem disparou:
- Também ficou com preguiça de andar na chuva?
Com sua voz de pessoa tímida, respondeu:
- Pois é, são só três pontos, mas com a chuva que tava caindo lá no Centro Cívico...
- E, olha agora, parou de chover! – disse a morena, levantando as mãos, na altura dos ombros, com as palmas apontadas para o céu.
- Essa cidade é maluca.
- Como dizem, aqui você tem que sair de manhã vestindo casaco pesado, levando sombrinha e biquíni na bolsa.
- Não trouxe meu biquíni hoje, droga, muito menos guarda-chuva. Tenho muito azar...
Foi interrompido por um riso atrasado da moça, que logo falou:
- Você usa asa delta?
- Prefiro maiô.
- Je ne parle pas français, mas nós estamos em “outubrô”, moço...
O rapaz parou de andar, encarando a desconhecida, e virou as costas dizendo:
- Au revoir, Shoshanna... – levantando uma das mãos em um aceno de despedida, mas logo se virou novamente para a moça
- Essa cena é ótima, mas a do “Gorlami’ é minha favorita.
Ela pegou a referência cinematográfica e isso o deixou ainda mais encantado, mas tinha problemas, sempre teve, para demonstrar interesse, coisa e tal.
Seguirem andando por mais três quadras, conversando sobre cinema, encontraram-se no assunto, arranjaram conversa para encontro futuros nisso, até que ela chegou ao seu destino. A faculdade. Era também o dele.
- Você estuda aqui?
- Me formei semestre passado, só vim buscar uma documentação.
- Ah, por isso a gente nunca se viu, eu sou caloura.
Despediram-se com longos sorrisos após a catraca e foram cada um para um lado diferente. Ele até quis procurar pela sala dela depois de cumprir sua tarefa. Ela até pensou em sair da sala e ir até a secretaria atrás dele. Apenas desejaram, pensaram.

Quarta-feira e a chuva tirara folga. Calor e céu limpo até as seis da tarde. Ela continuava feliz. Ele ainda não conseguira seus assuntos na faculdade no dia anterior. Coincidentemente, reencontraram-se no mesmo ponto de ônibus onde, ontem, ela encarava a chuva com um sorriso destruidor.
Distraído, mexendo em seu celular, assustou com a voz repentina que surgiu naquele ponto vazio:
- Olha só quem voltou!
(Ele tinha voltado apenas para tentar reencontrá-la).
- E você continua sem sombrinha, moça?
- Acho que hoje não chove.
- Será?
- Pensei em ir andando pra faculdade, mas deu preguiça.
- Preguiça é coisa de gente... – deu tempo para criar um certo drama, observando no rosto da moça uma feição de “o quê, coisa do quê, seu babaca?” – coisa de gente preguiçosa.
Ela riu e disse:
- Se você for andando comigo...
- Então vamos!
Começaram a caminhar e só neste momento ela percebeu que o rapaz possuía olhos azuis. Anteriormente, já tinha visto que eram grandes e profundos, mas a escuridão do encontro anterior impediu que ela reconhecesse a cor. Ela não era tão atenciosa assim quando o assunto era notar características de estranhos. Mas, ali, naquela quarta-feira, um dia após conhecer o não-mais-desconhecido, queria dizer: “Ô, moço, deixa eu me afogar aí nos teus olhos”, mas só pensou.
Caminhando pela ciclovia ao lado de um córrego, que estava ainda cheio e agressivo por conta da chuva do dia anterior, ela disse:
- Imagina se afogar aí – apontando as sujas águas que corriam a poucos metros deles.
Na única subida que enfrentariam na caminhada, puderam melhor avistar o conluio de nuvens que percorria o céu.
- Aquela ali. – disse ela, apontando uma, entre tantas outras em tons rosa-magenta-roxo com leves pinceladas de laranja, próxima ao horizonte oeste, onde a noite ainda não havia insurgido sobre a cidade que começava a escurecer. -  Parece a cabeça de um dinossauro...
- Aquela outra... Parece minha alma.
- Cinza, opaca e profunda?
- Queria dizer “deformada”, mas também serve.
Três quadras adiante na rota, a noite já havia se tornado maioria naquele céu, com nuvens maiores do que antes, mesclando-se entre cinza e azul, como se fossem imensos zepelins pairando sobre uma cidade britânica devastada pela Primeira Guerra. Começou o bombardeio, quando, em menos de dez minutos, todas nuvens se fundiram, formando uma só mais enegrecida e violenta. A chuva não teve paciência para esperar os dois chegarem a seus respectivos destinos. Talvez o destino deles, para aquela noite, seria mesmo pegar chuva novamente, pelo segundo dia seguido, mas a chuva daquela quarta-feira, ao contrário da de terça, trouxe algo além de água. Chovendo torrencialmente, os dois se encharcaram antes mesmo de encontrarem um abrigo. Pararam sob a marquise de um açougue já fechado e começaram a rir. O rapaz interrompeu o riso logo ao encarar a moça, que disparava o mesmo olhar de ontem, quando, ainda desconhecida, observava a chuva sorridentemente. Ele já não estava mais em seu corpo, sua alma saíra de si, deixara de existir em si, para repousar sobre os olhos e a boca daquela que, ao perceber o êxtase do rapaz, cerrou os lábios, ainda sorrindo, desta vez, sem mostrar os dentes e levantou as sobrancelhas, abrindo ainda mais os olhos castanhos. Então intimidou-se pelo olhar insistente dele e começou a encarar os próprios sapatos azuis, que imergiram em poças d’água durante a correria em busca de abrigo, tornando-se mais azuis, assim como os olhos do rapaz. Percebeu então a possível semelhança entre as cores e levantou o rosto para confirmar se eram de fato iguais. Em silêncio, constatou-se sozinha positivamente e sorriu como se ele, que não conseguia parar de encará-la, também soubesse do que se tratava. Cruzou os braços sobre o vestido preto, mirou o céu e disse:
- Será que chove, moço?
Ele enfim saiu da hipnose, semicerrou seus olhos e riu abertamente, expondo os dentes, indignado pelo assunto que ela puxara.
- Acho que talvez... – respondeu, interrompendo o riso, pois voltara a ficar magnetizado pelo fluxo de energia que saía dos olhos castanhos.
A chuva simplesmente não queria parar e os dois perderam o fio para conversar. Ela não queria conversar. Ele... inspirou prolongadamente e se aproximou da moça, deixando seu braço, coberto pelo moletom molhado, o mesmo do dia anterior, encostado no dela, desprotegido e ouriçado pelo frio que apareceu com a água que caía. Num movimento rápido, ela repousou sua cabeça no ombro do rapaz e ignorou que estive molhado. As bolsas de ambos estavam repousadas no degrau entre a calçada e a loja. Sem dar tempo suficiente para que ela pudesse se acomodar em seu ombro, o rapaz virou-se para ficar em frente a moça, deu mais uma longa inspirada e aproximou seu rosto ao dela a fim de beijá-la. Ela, fechando os olhos, disse:
- Não.
O rapaz recuou um passo, ficando no limite entre a marquise e o céu, sendo atingido por algumas gotas, e, antes de reagir, correr ou xingá-la, foi empurrado pela moça para a chuva.
- Agora sim.
Cena de filme, a diferença foi, depois de serem invadidos pela reconfortante sensação de quebrar a tensão nascida no dia anterior, ao revelarem o desejo, um ônibus passou na rua, gerando uma onda sobre eles. Assustada pela agressividade da água, a moça se separou do rapaz, tentando secar o rosto, mas, como ainda estavam desprotegidos, longe da marquise, não adiantou, no mesmo segundo, estava com a cara novamente molhada. Voltaram ao abrigo. Ele tirou o casaco, dizendo que ela estava com frio, pôs a peça sobre os ombros da moça, e se sentaram. De mãos dadas, encaravam a chuva com sorrisos ainda maiores do que os dados anteriormente naquela noite ou ontem. 
A chuva passou, mas não levou os sorrisos

2014/09/21

Lonely People 6

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Ainda calados, chegaram ao quarto de hotel e se separaram. Ele entrou no banheiro, carregando uma muda de roupas em mãos, para se trocar - sim, apesar da intimidade, que, além deles, só o escuro daquele lugar presenciou, tinham vergonha de outras intimidades, como trocar de roupa em frente ao outro -, e ela abriu seu computador para ver se a psicóloga amiga de uma professora havia respondido o email sobre uma vaga de emprego nesta cidade - segredo - e se aconteceria uma reunião/entrevista no dia seguinte. Assim que o rapaz saiu do banheiro, enquanto ele arrumava algumas coisas em sua mochila, a moça disfarçou singelamente, mudando de página, fechando a caixa de entrada sem respostas, e logo abandonou o notebook, abriu o frigobar e pegou o whisky que haviam comprado na noite anterior. Ainda imersos em silêncio, tomou um baita gole no seco e ofereceu ao moço, que tomou quase a mesma quantia que ela. A garrafa foi abandonada no criado-mudo.
Separaram-se novamente, ainda pensando no que conversaram há menos de uma hora. Encostada na janela e de costas para a rua, reflexiva e roendo unhas encarando o chão, disparou:
- Eu… - viu então que ele, antes deitado observando o teto, sentou na cama assim que ela abriu a boca - Vou embora...
O rapaz levantou seu comprido corpo assustado, aproximou-se, fitando o fundo daquela que começara a ficar com os olhos vermelhos como se para ver o reflexo de seus próprios olhos e encontrar, em sua mente, algum motivo que a fizesse ficar. Alguma resposta. Qualquer coisa para resolver este caso. Talvez dizer que estava vivendo os quatro melhores dias dos últimos cinco meses. Mas ela não deu tempo:
- Calma… - esperou que ele retrucasse como tanto fez nesses quase quatrocentos dias, mas nada. Não exatamente agora. Só queria falar que… - então despejou-lhe uma enxurrada de palavras que tentariam provar que os dois deveriam, sim, continuar se vendo, mas, também, sim, poderiam encarar a distância como algo que os ajudasse a fortalecer essa relação. Queria construir uma ponte forte e bonita que conectasse Curitiba a São Paulo, Braavos a Porto Real ou a cabeça tão pesada do jornalista ao colo instável daquela que já não sabia mais se queria se formar psicóloga, tanto faz, desejava arquitetar um plano para que o relacionamento funcionasse, mas sabia que planejamento poderia estragá-los. Após um silêncio criado como se para reavaliar o que pretendia dizer, seguiu: - … Eu gosto de você e quero continuar, mas … - O rapaz se sentou na cama, ainda encarando a mulher, impactado pelo peso do que ela lhe dizia, queria se levantar e dar-lhe o maior abraço do mundo, mas achou melhor não interromper o monólogo da moça iluminada pelo poste de luz em frente a janela do quarto - … Eu não quero um acordo. Isso pra mim seria sinônimo de comodismo, que só estraga as coisas. Tem muita coisa aqui dentro... - Deslizando a mão aberta do peito à garganta - Tá tudo muito bagunçado e eu quero me organizar pra poder seguir. Eu não quero te machucar, seria muita ingratidão minha estragar algo entre nós, mas a vida sempre acha um jeito de me derrubar, de fazer eu me perder, de arranjar uma forma para eu machucar as pessoas… Por mais que não queira machucar, acabo machucando. E não quero te machucar… Eu me perco e me afundo, cara, e… Ah...

2014/09/16

100% de uma metade

"não percebi que, às vezes, seria mais que o inteiro. Que o inteiro era uma ideia muito 
mas quando finalmente ficamos juntos, estamos demasiadamente desgastados, tanto pelo tempo quanto pela distância, ambos fatores acompanhados de um eterno e efêmero vai e volta de nós perdidos, para deixar que algo bom acontecesse. criamos em nós a isenção às experiências positivas devido ao nosso mergulho desproposital no pessimismo.
eu consegui, sei que você também conseguiu (como eu sei? querida, tenho minhas fontes. esqueceu que trabalho descobrindo informações secretas?), conhecer outras pessoas e me afundar nelas assim como me afundei em você, e você nelas, e você em mim, ah, como era bom. ou ainda é? vem aqui pra eu testar um negócio. voltando ao monólogo, enquanto você dorme e ronca e cochicha algumas palavras que devem ter vazado de um sonho, mas depois pergunto sobre o que era, eu me envolvi com outras, você e seus outros, conseguindo até atingir visível aprofundamento no relacionamento em intimidade e carinho (não como tenho contigo), mas, mesmo assim, qualquer pequena lembrança do que nós dois vivemos juntos ressuscita a vontade e tudo aquilo que existe ou existiu, nem sei mais, entre nós. teve uma vez que eu estava com uma mulher, enfim, o caso não vem ao caso, e simplesmente travei, no meio da rua, parei de andar, minha mente apagou, quando ela disse que odiava aquele filme que destrói nossos corações, mas tanto amamos. naquele dia, inventei que estava passando mal e fui pra minha casa ver o tal filme desgraçado, quanto mais próxima a cena do velório no hospital ficava, mais meu peito doía, problema auxiliado pelo desenrolar do filme, por causa de um buraco que abriu no meu peito, faltando-me ar, que batizei carinhosamente de saudade. o que eu tô tentando dizer é que eu poderia estar casado com a adèle, não aquela que rola nas profundezas, você sabe, constituindo uma família em que as crianças todas têm a cara da mãe, mas ainda estaria pensando em ti. sentindo tua falta. querendo a tua presença. o teu carinho. o teu sorriso. as tuas falas enquanto sonhas. as tuas crises de ansiedade. o teu bolo de laranja. o teu silêncio...
confortável, porque são as metades que dividem ao meio. Eu não sabia, nem sei, sobre os
mas eu sei que estamos/estaremos fadados ao fracasso enquanto desejarmos que fiquemos juntos. se não desejarmos também. de qualquer jeito, estamos fodidos. porque não conseguirmos nos separar definitivamente. nem a porra do oceano atlântico conseguiu fazer isso pela. ou a gente se casa com a atriz e o ator de nossos sonhos platônicos ou a gente continua nessa vai e volta de incertezas, dores e vontade e tudo aquilo que nos faz bem, apesar dos pesares.
você vai me xingar, fique à vontade, mas: a gente se completa, "você é a panela da minha tampa", sim, mesmo nesse furacão problemático chamado nós, a gente se conhece tão bem que não há outra pessoa, ao menos ainda não conheci, que entende nossa confusão e entendemos que é assim tem que ser, se não for, vai ser assim mesmo. outros corpos, outros portos, outros relógios, eu me rendo a isso tudo. eu não posso nem quero exigir que você seja ou aja de um jeito ou outro, até porque eu gosto de você assim, completamente você. até que você seja incompleta, não importa, joe, eu te quero mesmo vazia. eu te pedi "paciência" no início, lembra? mas eu mesmo desisti disso. não aguento esperar que o tempo resolva sozinho nossa situação. ah, mas nem mesmo a gente consegue. eu começo a correr enquanto falo e esqueço em qual faixa estou voando, aí me colido comigo mesmo, porque entrei na mesma rua que anteriormente, e me esqueço do que estava falando no início do parágrafo ou do texto. sei de nada mais. nada sei demais. lembrei, sobre as metades, é... sobre relacionamentos, a gente pensa parecido e acho que é assim que funciona melhor. a gente não precisa gostar das mesmas músicas, praticar o mesmo esporte, frequentar o mesmo culto religioso ou ter os mesmo sonhos, desde que, individualmente, saibamos como agir num relacionamento. a gente sabe e repete que vai doer quando acabar (de verdade, se é que alguém consiga romper esse cabo de aço que nos une) e isso que meio que nos anestesia para enfrentar a dor. acordos, aros nos dedos, atualizações de status, a gente que isso não funcionaria com a gente, e conversamos sobre isso antes do meio dia no relógio do nosso relacionamento, aliás, eu nem devia estar falando "relacionamento", porque parece que estou nos rotulando. se esses clichês comuns funcionam entre outras pessoas, problema alheio, não nosso, mas a gente sabe que o nossos clichês podem ser resumidos em um só: problema. mentes problemáticas que estragam as coisas, quando tudo está indo bem, sem querer. lembra daquela vez que derrubei vinho em um de seus rascunhos e a gente ficou a noite inteira sentados no chão da cozinha, cada um encarando um canto, sem saber o que dizer? quer dizer, eu comecei com "desculpa", mas você logo me encarou com um olhar, meu deus, como aquele olhar me lembrou a delpy, como se pedindo pra eu me calar. sem falar nada depois de quase uma hora, sei lá, você se aproximou, repousou a cabeça no meu colo, deitou e dormiu. depois disso, só lembro de acordar com o tibs lambendo a minha cara. meu, que saudades desse cachorro. (e de você)
pedaços do meio, os pedaços sangrentos de você e eu.
em todas as vezes que ficamos juntos nesses mais de dez anos, com uma rápida rasteira no escuro, caímos, e, como aquela luz dos primeiros dias se apagou, não conseguimos mais sair do breu. aí vem uma luz não sei de onde, mas pode demorar um tempão pra aparecer, e ilumina tudo novamente e a gente se anima pra tentar mais uma vez "sem machucar, ok?", como a gente gosta de repetir quando reatamos nós. a relação termina, mas o sentimento também? acho que não. a relação continua viva enquanto existir sentimento. mas esse sentimento que tenho por você é tão bom, me faz tão bem, apesar dos inúmeros problemas e do histórico bagunçado, que seria uma crueldade desgraçada acabar com ele assim, a sangue frio, como se fosse um serial killer sem coração, mas você que meu coração, quanto mais explode, não para de crescer. como pode sermos tão masoquistas? será que é pra esperar esperançosamente aqueles 50% de chances que existem nas possibilidades de algo dar certo. " - eu quero que dê certo...", "- mas o que é certo? é tão relativo..." a gente insiste nisso, mesmo com um rol de cicatrizes variadas, por quê? talvez a gente precise parar de perguntar e apenas seguir, sentir, insistir. 
mas tenho certeza que alguém que acompanha, ou acompanhou até cansar, nosso romance pensou durante uma das primeiras crises que era apenas uma fase ou falta de maturidade comum ao início da juventude que mudaria com o passar dos anos e nos tornaríamos adultos distantes de problemas e felizes para sempre. a gente sabe que isso não funcionou. não foi só uma fase, nós somos assim.
like crazy