2012/12/21

Communal blood


Um dos amigos decidiu propor um brinde ao casal, segundo ele mesmo, mais incrível e bonito de todos:
- Por favor, casal, falem alguma coisa sobre amor eterno e essas baboseiras que vocês vivem há, quanto tempo?, sete anos.
Ele, plenamente alcoolizado, dono de uma voz grosseira proclamou convictamente em frente aos amigos e a sua mulher:
- Puta merda, nós não somos um casal...
Mas o excesso de álcool prendeu sua língua que pretendia dizer algo mais. Travou.
Todos na mesa, travados. Ele fora interrompido por ela que se levantou e rumou à saída do bar. Uma reação sem sentido sobre algo mais incompreensível ainda.
Ela sabia que não devia ter saído de casa, pois o deadline de uma matéria venceria no dia seguinte. Mesmo assim, ela decidiu acompanhar seu moço e seus amigos. Ela devia ter ficado em casa trabalhando, ao invés de ouvir tal ofensa alcoolizada. Agora sim ela tinha mais um motivo para se odiar. Pegou um táxi, foi pra casa e percebeu que deixara seu computador e todas as suas anotações a respeito do trabalho na casa do rapaz.
Pegou outro táxi, foi a casa dele. Chegando lá, pegou suas coisas na sala e foi ao quarto espiar se o maldito estava por lá. Sim, dormindo feito um bebê hibernante. Lembrou-se que deixara seu cartão bancário em casa. Sua carteira estava vazia. Não tinha como voltar pra casa de táxi e estava sem coragem pra andar do Alto da XV ao Água Verde às três da manhã. Seu orgulho não queria acordar o desgraçado e pedir-lhe dinheiro emprestado.
Decidiu por ficar ali mesmo terminado suas tarefas. Ela sabia que ele não despertaria tão cedo e que, se ela não o perturbasse, nem saberia que ela esteve lá.
Ele estava com a cabeça no lado oposto do travesseiro. Na beirada do colchão. Quase caindo no chão. Abraçando o edredom. Suando demasiadamente. Vestindo apenas sua velha samba-canção xadrez.
Ela sentou-se no lado oposto. Bem no canto. Colada à parede. Pôs o notebook no colo e pôs-se a trabalhar silenciosamente.
Os sonhos dele sempre queriam fugir e, enquanto dormia, o faziam chutar o ar e suspirar.
Ela mal se mexia focada na atividade.
Subconscientemente, dormindo, começou a perceber uma presença em seu quarto. Uma pessoa, um espírito, apenas vento, ele só poderia afirmar se despertasse. Abriu os olhos lentamente e foi vendo que não era só uma pessoa, nem só um espírito, nem só vento. Era tudo. Pessoa, espírito, vento, carinho, aventura, bagunça, música, altruísmo, egoísmo, megalomania, cientologia, budismo, ciclismo, trem-bala... Sua mulher era tudo.
Despertou, mas fingiu que continuava dormindo. Percebeu que o semblante dela, escondido por trás dos joelhos, estava pesadamente triste. Logo recordou o motivo. Logo se ligou que dissera besteira. Logo sentiu vontade de pedir perdão. Mas sabia que ela o negaria três vezes antes de iniciar um sermão sobre impulsividades alcoolizadas. Ficou observando a moça. Do jeito sonolento que ele sempre se encantava. Toda concentrada. Descalça. Com o vestido xadrez. Com o cabelo bagunçadamente solto. Decidiu por agir.
Começou a acariciar o pé esquerdo da mulher. Do dedão ao minguinho. Do minguinho ao dedão. Carinhos lentos e leves regidos pelo indicador.
Ela mal reagira. Já tinha percebido que ele acordara. Encarnou cara de emburrada e começou a encará-lo.
Enquanto passeava pelo pé de sua moça, refletia e confabulava um pedido de desculpas.
Por mais que ela estivesse de mal, seus pés a subornaram a sorrir. Manteve silêncio, até que ele começou:
“Eu sou os pés... Você é a ligeira nuvem.
Eu sou a dor... Você é o alívio.
Eu sou o rascunho queimado... Você é o poema milenar.
Eu sou a melancolia... Você é o largo sorriso.
Eu sou os freios... Você é o pedal.
Eu sou o coma... Você é o café.
Eu não era... Você me fez ‘ser’.
Nós não somos um casal... Somos um.
Você tem todos os meus opostos justamente pra balancear essa confusão chamada eu.
Eu sou a palavra vomitada que machuca... Você é a compreensão de que sou um idiota, que precisa de você pra me alocar nos trilhos.
Eu sou a ironia mal pensada... Você é a gramática que me corrige.”
Ela amava as epifanias poéticas dele, mas teve que contrariá-lo:
- Puta merda, nós não somos um casal... Quer dizer, ainda somos... Mas seremos um trio em oito meses.

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