2013/11/12

Bolo de chocolate

- Você quer bolo de chocolate?
Atendi o telefone e logo ouvi a pergunta, mas, ao invés de perguntar quem era imediatamente, preferi tentar reconhecer a voz. Estendi o diáologo:
- Quero, mas cadê?
- No bolso do casaco da Marília, que tá pendurado na cadeira – disse a voz feminina, que ainda não conseguia reconhecer. Também não lembrava de conhecer nenhuma Marília.
- A Marília! Tia da minha mãe! Eu sei que você quer bolo, pega lá.
Comecei a filtrar na minha cabeça todas as mulheres que tinham uma voz semelhante a essa do telefone e cheguei a três candidatas. Ao invés de perguntar quem era, insistia em tentar adivinhar. Podia ser minha prima, mas ela não tinha nenhuma tia-avó chamada Marília. Talvez fosse minha colega da faculdade, mas a voz do telefone não tinha sotaque catarinense.
Então, na sala, percebi uma terceira voz, que não me era conhecida. Fui até lá e vi quem era que estava tomando café com minha mãe e minha irmã. Ainda com o celular em mãos, cumprimentei-as e logo percebi quem era a voz do telefone.

Eu estava a horas sob o sol incomum que resolveu visitar a cidade. Minhas costas já estavam queimando por mais que eu estivesse de camisa e regata. Indo em direção a lanchonete da praça, onde compraria uma cerveja para refrescar meu grupo e eu, vi um grupo de meninas sentadas em frente a loja vizinha, que estava fechada. Só olhei, porque faziam barulho.
Tempo depois, quando o sol estava a 90º e insuportável demais, resolvi puxar o grupo pra sombra e nos sentamos ao lado das meninas barulhentas, que naquele momento comiam um bolo de chocolate todo derretido por causa do calor. O espaço para sentarmos era limitado e metade das pessoas que estavam comigo tiveram que se sentar no chão, inclusive eu.
Sentei de modo que conseguia ver perfeitamente uma baixinha de cabelos curtos e piercing no nariz. “Que olhos!”, gritei a mim mesmo. Ela era a única das meninas que não estava comendo, apenas observava o movimento na praça com olhos cansados. Os olhares iam de lá para cá, da esquerda para a direita e quando vinham a minha direção, eu disfarçava.
Eu também estava tão cansando por causa do calor, que não me empolgava pra conversar sobre coisa alguma com meus amigos. Eles falavam sobre arte performática e o russo que ficou nu em Moscou, isso não me interessava. Meu cansaço não me permitia nem tentar elaborar um diálogo com a moça.
As amigas dela, que estavam alcoolicamente alteradas, derrubaram o bolo de chocolate, que mais parecia uma calda, no colo da moça-olhos-cor-de-mel, justo sobre sua camiseta clara. Ela ficou irritadíssima, xingou-as até a morte e, não sei porquê, olhou para um cara que estava sentado próximo a ela, todo hipnotizado pela cena. Ela gritou:
- Você quer?
Era outono, época em que todas as estações do ano visitavam a cidade na mesma semana, no mesmo dia às vezes. O que fazia com que minha rinite atacasse brutalmente. Isso me obrigava a carregar um pacote de lenços no bolso a fim de evitar qualquer constrangimento público relacionado a coisas que saíssem involuntariamente do meu nariz.
Ao conseguir desviar do olhar da moça e focar em sua camiseta suja de bolo de chocolate, puxei meu pacote de lenços e apontei à garota.
Não sei o que deu nela, mas o olhar raivoso se transformou em até-hoje-não-consigo-explicar-o-que-foi-aquele-olhar-pra-mim. Hipnotizada, levantou-se, veio a mim, pegou o pacote de lenços e disse:
- Vem, me ajuda a limpar.
Nisso, tanto o meu grupo quanto o dela, estavam imóveis e mudos. Levantei sem desviar meu olhar, percebi que sua altura batia nos meus ombros e perguntei:
- Onde?
- Por aí – respondeu.
Para evitar que ela se constrangesse mais, tirei minha camisa e dei a ela:
- Meu, tó, veste isso aqui.
- Eu preciso passar em casa trocar de roupa, depois a gente pode dar uma volta por aí, pode ser?
Fomos até lá e não saímos mais naquele dia. Passamos a noite toda trocando olhares, compartilhando experiências frustrantes de vida e deixando marcas em nossas almas. Então parti, sem trocar números ou nomes. Queria que tudo isso ficasse marcado em mim sem a necessidade de repetição. Quanto mais as coisas se repetem, mais enjoam, mais perdem a graça. E eu definitivamente não queria que o gosto daquela moça saísse de mim. Eu sei que poderíamos ter dado muitíssimo certo. Era uma incógnita que eu preferi não decifrar.
Nesse mesmo dia do acidente com o bolo de chocolate, ao entramos na casa, conheci sua mãe, que pareceu não ter se importado com o fato da filha ter levado um estranho pra casa. Uma senhora muito simpática que me ofereceu empadão de frango, mas rejeitei respondendo:
- Não, obrigado, mas eu não como carne.
A moça olhou pra mim surpresa dizendo:
- Sério? Eu também. Há quanto tempo?
Deixamos a senhora sozinha na cozinha e começamos a conversar sobre vegetarianismo.

Eis que quem estava com minha mãe e minha irmã era a tal senhora que havia oferecido empadão de frango. Quem estava no telefone me oferecendo bolo de chocolate era a moça dos olhos-cor-de-mel. Mas o que eu não sabia e morria de curiosidade para saber era:
Quem é Marília?

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