2014/01/12

(vazio)

- Você é um amor de pessoa. – disse a moça para quem ele acabara de dar um cigarro.
Ele sabia disso. Ninguém precisava reitera-lo do assunto. A triste verdade é que ele não sentia vontade de exercer o tal título. As pessoas não faziam por merecer.

Desde bebê, fora acostumado a dormir apertando o lóbulo fosse de sua mãe ou de seu pai. Quando esses dois não podiam mais alimentar essa mania, começou a utilizar nas mulheres com quem dormia. Fosse de uma noite ou de uma vida inteira-enquanto-durasse, a mulher teria de aceitar o gesto que o tranquilizava intensamente.

Nos tempos de melancolia, já adulto, recorria à praça onde passou grande parte de sua infância, brincando de bola, brincando com algum de seus cachorros – sua casa recebera até os doze anos de idade do menino, sete cães (Primeiro veio Belarmina, que morreu e foi substituída sequencialmente por Azul, Carpa, Linus, Jornaleiro, Agá e Tibúrcio (este, na opinião do menino, o melhor companheiro e ser vivo que ele já conheceu). Após os incidentes de seu aniversário de 13 anos, o garoto não teve mais companhias caninas. Nem mãe nem pai. Começaram as ruínas.
Não sabia como lidar com sua vida a partir desse desmoronamento. O apartamento dos pais ficou para o único tio do menino, que, solidário e sem precisar do apartamento ou as verbas que o aluguel o daria, pôs o imóvel em seu próprio nome e deixou o menino morando lá sozinho. Semanalmente, o homem visitava o garoto, forçado a ser adulto antes da hora. Toda semana, o menino recebia comida, dinheiro e itens suficientes para os próximos sete dias.

Seu relacionamento com o cigarro era instável. Não fumava todos os dias e ia além, ficava um, seis, doze meses sem ter vontade de fumar. Porém, quando o desejo pelo produto com “perigo” estampado na embalagem surgia, sua reação impulsiva não cogitava analisar os malefícios que aquilo poderia lhe fazer.
Ele sentia a fumaça corroer seus pulmões, mas era justamente isso que o fazia sentir-se vivo, apesar de morrer um pouco mais a cada nova tragada. Ele captava o caminho da fumaça em seu organismo. Inspirar e expirar com a fumaça era uma terapia tranquilizante. Ouvir e sentir sua respiração o fazia querer respirar mais, ouvir mais, viver mais.
Era a terceira semana seguida que ele passava boa parte da noite sentado sob a luz do mesmo poste na tal da praça nostálgica fumando. Antes de se alocar, passou na banca de revistas e comprou uma carteira de cigarros. Assim que se sentou, surgiu um moleque, uns cinco anos, no mínimo, mais novo, perguntando se ele poderia vender ao desconhecido um cigarro. Respondeu com o cigarro aceso na boca e um tom adulto, o que ele realmente era há dez anos neste mesmo dia:
- Tranquilo, cara, eu te dou. Fique susse.
O garoto ficou sem jeito aguardando o homem tirar o cigarro, que cismou em não querer sair da carteira. Logo que recebeu o cigarro, não hesitou em dar umas moedas ao solidário fumante.
Poucos instantes depois, vinda do mesmo grupo do outro garoto, surgiu uma menina pedindo um cigarro e dizendo que não teria nada a oferecer em troca. Neste momento, o homem de mente às vezes maliciosa riu internamente, mas disse que não haveria problemas em doar mais um de seus assassinos. A menina agradeceu dizendo que ele era “um amor de pessoa” e retornou aos seus amigos.
Fumou seu terceiro cigarro, juntou as bitucas e se levantou. A caminho do grupo de adolescentes, que deveriam estar em suas respectivas casas àquela hora da noite, depositou em um lixo as bitucas. Parou em frente aos menores dizendo “Toma, piazada, presente pra vocês” e seguiu o caminho de casa. Ao fazer isso, lembrou-se de Mikael Blomkvist comprando uma carteira de cigarros e a jogando inteira no lixo após pegar e acender um só cigarro.

No dia seguinte, era um sábado, retornou à praça em um horário diferente. Muitas crianças e muitos cachorros corriam pelo lugar fazendo muito barulho, mas ele conseguia ignorar tudo isso e pensar em outras coisas, fingir que estava dentro de um sonho ou que alguma moça estivesse ao seu lado naquela tarde de sábado. Aliás, nem isso, amor (ou vontade de estar com alguém), ele sentia naquele momento.
Começou uma baderna entre cachorros, que chamou a atenção do nosso rapaz. Ao olhar à origem do barulho, viu um moço correndo dos animais ferozes. O tal rapaz o lembrou um personagem de um filme que assistiu. Então começou a conversar consigo mesmo sobre cinema e personagens frustrados. Foi então que lhe ocorreu a ideia de arriscar ver o que estivesse em cartaz na sala mais próxima.
Ele estava se sentindo vazio há dias e acreditava que o filme fosse o preencher ou pelo lhe impor uma sensação ilusória de preenchimento emocional, mas, ao fim da sessão, sentiu-se mais vazio ainda, e, além disso, machucado internamente ao compartilhar da mesma dor da protagonista:
- Eu não sinto mais nada... Eu não sinto! – Disse ela desesperada aos prantos na cena final.

Afundou-se quieto na cadeira até que os créditos finais acabaram. Ele não queria sair dali. Ele não conseguia imaginar como sua vida seria dali em diante. Não que ele tenha ficado assim por causa do filme, mas assistir aquilo lhe fez repensar aonde ele estava indo. Lugar nenhum. Ele queria ir a um lugar que o preenchesse, mas sem lhe prejudicar, o que o cigarro o fazia. Ele queria um vício novo, estava cansado de cigarro e vazio. Sua primeira e única experiência com outras drogas, no final, trouxe a mesma coisa de sempre: o vazio. Ele afirmava que a arte era sua droga verdadeira e favorita. Era o que o distraia das tristezas e, novamente, porque sim, do vazio.

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