2014/02/01

Erra

Espelho, retrato, reflexo, amor

Cada dia durava vários dias. Eu não sentia os dias, não me empolgava em enfrenta-los. Fora do trabalho, eu passava os dias em casa dormindo ou no bar tentando encontrar o amor no fundo de algum copo de cerveja.
A vida passava muito lenta sem minha mulher. Eu queria voltar à intensidade dos dias ao lado dela. Eu estava começando a ter raiva dela por ela ter escolhido essa vida artística e ter que ficar uns dias fora do país para lançar seus trabalhos.

Num dia até então normal, cheguei do trabalho desejando um banho gelado e cama, mas, ao entrar no prédio, Seu Renato, o porteiro, adiou meu roteiro e me fez parar na portaria para pegar “um negócio que o carteiro deixou”. Respondi que não esperava encomenda alguma.
- Acho que é dos estrangeiro – disse Seu Renato, levantando-se e caminhando até um armário – tem umas escrita diferente.
- Tem algum nome? – perguntei.
- É tanta letra que não consegui achar – embaralhou-se para pegar a chave do armário.
- Será que não é uma bomba? – a curiosidade me invadiu, não pela possibilidade de ser uma bomba, e quase gritei para que ele se apressasse para abrir o armário.
- Olha, acho que é meio fino pra ser uma bomba, mas não duvido da tecnologia de hoje. Vai que é... – riu e finalmente me entregou a misteriosa entrega.
Agradeci e subi ao meu apartamento. Finalmente em casa, encontrei o nome de quem enviara a fina caixa com pouco mais de meio metro de altura e largura. Rasguei-a com as próprias mãos cheias de ansiedade, mesmo com a resistente fita adesiva.
- O que foi que você me aprontou, mulher? – questionei como se minha esposa fosse me ouvir a 9.716,85 km de distância.
Após vencer a luta contra a embalagem, encontrei o maravilhoso mundo do plástico-bolha. Porém, ignorei o passatempo e joguei o material protetor no chão. Por fim, vi que a moça me enviara um quadro e um cartão postal.
Na despedida no aeroporto, falei para ela trabalhar muito e conhecer a cidade toda com exceção do ponto turístico mais visitado daquele lugar, porque, assim como eu, ela não gostava de passeios "de turista". Para me provocar certamente, o cartão postal era justamente desse local, porém, com uma alteração feita com canetinha: “THIS PLACE SUCKS!” sobre o monumento. No verso, apenas:
“Estou entediada desse lugar e te fiz esse desenho pra me distrair (e me lembrar de você). Saudades mandou um beijo e diz que será assassinada em breve. Obs.: Esta moldura é importada, vê se não joga no lixo, manezão!”
Ela me zoará eternamente sobre a vez em que, numa exposição de uma colega dela, vi uma moldura no chão e a joguei no lixo. Depois descobri que fazia parte da exposição e que a peça valia... muito.
Deixei o cartão sobre a mesa da sala e comecei a desembrulhar o quadro, que estava num plástico filme ou coisa parecida.
Havia moldura, mas não havia vidro. Era apenas tela e moldura. Eu não entendo tanto dessas coisas quanto ela, mas era um papel de um tipo grosso. Também não sei diferenciar pintura de desenho. Dei uma ligeira observada na obra e dei um sorriso sem razão. Fui então procurar martelo e prego para pendurar o quadro. Numa das poucas paredes livres em nossa sala, instalei a peça e fui dormir.
Num dos passeios que costumava dar pelo apartamento após acordar até despertar de vez, deparei-me com o desenho e então se desenhou a cena: um homem encarando a pintura de um homem se encarando no espelho.
O corpo de costas aparentava cansaço, os ombros estavam pesados. O reflexo sorria imensamente, mas seu sorriso era todo distorcido, desproporcional, maior que tudo. Eu sentia que havia algo a mais naquele desenho. Tinha algo com o espelho emoldurado, eu tinha certeza.
Então percebi que o espelho estava extravasando sua própria moldura. Foi só aí que percebi um pedaço de fita adesiva saindo por trás do espelho. O reflexo era na verdade um papel sobreposto ao desenho maior.
Na pintura principal, no lugar do pedaço de papel com minha imagem – sim, com toda a certeza, era eu - havia minha mulher desenhada.
Era como se eu fosse o reflexo dela, ela fosse meu reflexo, vice-versa ad infinitum.
Minha vontade era abraçar aquele quadro até que se transformasse na minha mulher e, assim, eu continuaria a abraçando até cansar. Deixei o meu reflexo cair da minha mão e, ao me curvar para recolhê-lo, vi que havia algo atrás. Era uma carta.
Assim como o desenho, as letras foram feitas por uma espécie de grafite ou similar.

A carta:

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