2014/07/22

Parede

Nem ele mesmo sabia o que fazia naquele bar. Era uma época em que não mais seus impulsos e sua ansiedade tinham poder influente grandioso em suas decisões. Cortara a café há mais de um mês, porém a cafeína era coadjuvante em sua rotina devido aos chocolates que comia diariamente.
Na verdade, ele não queria assumir o motivo: estava quebrado. Cinco e somente cinco palavras alheias foram lhe suficientes para arruinar. Sua nova ideologia sobre relacionamentos tinha um calcanhar de Aquiles: acontecer exatamente o que ele dizia não querer.
Ela sabia que fazia naquele bar. Era uma época boa de sua vida, que acabava de ser arruinada pelo sumiço daquele que parecia ser o homem de sua vida. Não que ela quisesse casar com ele viver eternamente a seu lado, mas, poxa, não queria que terminasse tão cedo.
Sua amiga S. não quis saber de tristeza e foram ao bar para afogarem-na em álcool. Porém, sem perceber, as amigas se distraíram e deixaram sumir. K. entrou no banheiro e não quis mais sair. Queria descer descarga abaixo e sumir. Indignava-se pelo fato de tal estado ser motivado por uma pessoa.

Enfim, lamúrias a parte, vamos aos fatos daquela noite de terça-feira, após um dia iniciado com um estranho sonho envolvendo sua cidade natal, ruas de chão, ônibus sem luz, bancos empoeirados e distanciamento; e uma sms pedindo para que as coisas do rapaz fossem postas em uma caixa e deixadas na portaria do prédio dela.
Talvez por saudade daquele tempo de porres diários entre expediente e sala de aula, resolveu tomar tal atitude: Foi tomar todas. Começou por uma cachaça que desceu como um abraço e permaneceu quase a noite toda com um copo de plástico, sempre preenchido quando esvaziado, com cerveja. Talvez por falta de novas opções, K. foi ao bar de sempre.
Apesar de frustrado, Inácio preferiu não ferrar com a sua noite fumando cigarros. Exagero. Mas ficou quase a noite toda na calçada em frente ao bar com seus conhecidos fumantes, mas para observar as moças. Aquela que parecia uma personagem do Godard, ok. Aquela que parecia não pertencer àquele bairro alternativo, ok. Aquela que era de ninguém, ok. Aquela que, sem querer, frustrou o rapaz, não. Afinal, estava ali para encarar outras, distrair-se, esquecer por três horas que fosse daquela que... Enfim. Ele conhecera tantas garotas na noite. Nenhuma delas o conhecia. Parecia seu amigo Adalberto, que era apaixonado por romances platônicos. Mas, Deus o livre, ele não queria ser assim.
Numa ida ao banheiro, passou pelas mulheres que esperavam que alguém saísse do banheiro. Impacientes. "Faz quinze minutos que tem uma guria aí dentro", reclamou uma delas. Inácio ofereceu o banheiro masculino às damas, mas nenhuma aceitou. Já dentro, assim que o barulho de sua bexiga sendo esvaziada reagindo com o encontro da água na privada cessou, percebeu uns suspiros vindos do outro lado da parede, no toalete das mulheres. Era choro. Do lado de fora, ouviu alguém bater na porta feminina com raiva. "Sai logo dessa merda", gritou uma voz furiosa. Ainda com as mãos não-limpas, baixou a tampa e subiu na privada. Pouco acima de sua cabeça, havia um intervalo entre parede e teto de uns vinte centímetros. Sem olhar por ali, com medo de ver algo estranho, perguntou:
- Moça, cê tá bem?
Nada. Repetiu a pergunta.
...
- Não. Me deixa!
- Ô, moça, tem gente querendo usar aí. Te ajudo a achar um lugar melhor pra chorar.
- Não, vai embora. Nem me conhece.
De voz, não conhecia mesmo, mas resolveu se esticar mais um pouco para ver quem estava ali, na fossa.
A baixa estatura de Inácio o atrapalhava em descobrir quem estava ali, a uma parede de distância. Pendurou-se na parede e subiu.
Ele conhecia de stalks passados a mulher sentada encolhida no canto do banheiro. Disse em ironia:
- Oi, com licença, desculpa invadir teu espaço, mas, se você demorar mais, galera vai derrubar essa porta e te tirar daí na bicuda.
A moça, com a maquiagem no olho esquerdo descendo borrada até a bochecha, continuou encarando o chão.
- Você não me conhece, mas eu sei quem você é, K.
Ela levantou o rosto rapidamente, estranhada, e perguntou:
- Quem é você?
- Um maluco que tá pendurado numa parede escorregadia te pedindo pra sair do banheiro - e soltou um de seus sorrisos que, segundo uma ex-namorada, eram ingenuamente encantadores e sinceros.
Encarou a porta, levantou-se, arrumou seu vestido, pegou um papel higiênico para limpar seu rosto e disse:
- Tá bom, vamos.
Teve que saltar da parede para alcançar a privada e... A força foi tanta que a patente não aguentou e levou os pés de Inácio diretamente para a água. De fora, K. e o resto da fila puderam somente ouvir uma barulheira desastrosa. Ele se desequilibrou e deu com a cabeça na porta. Momentos de silêncio interrompidos por um "Ih, morreu" da plateia.
Sentou-se na ponta da privada e levou as mãos ao rosto. Soltou um "Ah" e viu que suas mãos estavam pintadas de vermelho.
- Moço, cê tá bem? - perguntou K. apressada assim que ouviu um sinal de vida dentro do banheiro.
A vida seguiu normalmente no banheiro feminino, depois que a tristeza de K. liberou espaço. Porém, do outro lado da parede, Inácio precisou de um tempo para conseguir levantar.
Saiu e deu de cara com K. que estava escorada na parede encarando a porta preocupadamente.
- Inácio, prazer. - Soltou mais um de seus sorrisos e se encaminhou à pia para limpar seu rosto. Lavou as mãos antes de enfiar a cara debaixo da torneira e soltou um gemido de dor. K. pediu para ver como estava o machucado e assustou Inácio ao passar a mão nas costas do rapaz. Ele levantou o rosto e o mostrou.
- Foi um corte bem pequeno, Harry Potter.
- E você tá parecendo o cachorro d'Os Batutinhas - disse ele cedendo espaço para a moça também lavar o rosto.
Saíram do bar juntos com suas cicatrizes, as dela mais escondidas apesar de também recentes, e se sentaram num meio fio qualquer para conversar.
- Daonde você me conhece?
- Da vida. Já te vi por aí...
- Onde?
- Internet, temos amigos em comum - Inácio então, lembrando dos stalks, recordou que ela namorava. Ou não. Talvez o término fosse o motivo das lágrimas no banheiro - Por que você tava chorando, moça?
- A vida.
- Conta aí, meu, que eu conto minhas tretas também. Sigilo de bar.
- Você também terminou um relacionamento sério hoje?
- Não... Quer dizer... Era cedo demais pra dizer ser era sério, mas eu  queria que fosse. Quem terminou, você ou ele?
- Como você sabe que é "ele"?
- Stalker.
- Medo...
- Então?
- Ele simplesmente sumiu.
- Como ele conseguiu deixar alguém assim. - Ele não pretendia flertar com K., queria respeitar sua dor, mas acabou entregando de bandeja o desejo ao dizer - Uma guria linda! Sério, que vacilo.
Imediatamente, ela percebeu, mas disfarçou:
- É complicado explicar, era complicado demais.
- Por quê?
- Ele e sua instabilidade. Tinha dia que me acordava com beijos e café da manhã na cama. Tinha dia que era um canhão de grosserias e mal olhava na minha cara.
- Eita, isso aí é problema psicológico - antes de terminar a última palavra foi interrompido por um tapa em sua cabeça. Era Adalberto perguntando onde ele esteve nos últimos vinte minutos. Inácio respondeu:
- Não te interessa, palhaço.
K., depois de perceber que os dois eram amigos, riu e sorriu para o estranho como se dizendo "oi".
- A gente vai dar uma volta, vai ficar por aqui?
- Sim, - disse Inácio encarando a moça - vou ficar. Até depois.
- E você? Qual sua história de hoje? - prosseguiu ela.
- Vishe... Você bebe?
- Sim.
- Então vou pegar uma cerveja pra gente, aí te conto.
Enquanto ele ia ao bar, K. mandou uma mensagem a suas amigas avisando onde estava. "Se cuida", "É gato o bofe?" e "Não aceite doce de estranhos" foram as respostas de S., que estava dentro do bar com as outras amigas.
Compartilharam experiências românticas e corações quebrados por mais de uma hora, quando a carona de K. anunciou que estava partindo:
- Preciso ir, minha amiga vai me levar em casa e já tá indo.
- Mas você quer ir? Onde mora? - apelou Inácio pegando na mão dela.
- Não... - então K., antes de se levantar, deu-lhe, no rosto, um beijo suficientemente quente para o derrubar.
Ergueu-se rapidamente e perguntou:
- Onde você mora?
- Na Iguaçu, quase esquina com a República Argentina.
A resposta imediatamente alegrou o rapaz, que sorriu e disse:
- Então a gente divide um táxi. Eu moro na esquina com a Saint' Hilaire.
- Mentira!
- É sério.
- Então tá, a gente vai. Agora?
- Você que manda.
- Por mim, a gente fica mais um pouco aqui, mas só vou ali me despedir delas.
Ficaram ali por mais um tempo e foram embora. Dormiram juntos. K. engravidou. Na verdade, já estava do ex-namorado, mas nunca descobriu. Não importava. Inácio cuidou da criança como se fosse sua filha. Aliás, o que importa, apesar da herança genética, é quem cria. Durante a gestação, entre crises profissionais dela, "minha carreira está arruinada", e ataques de ansiedade dele regadas a álcool, "eu não serei um bom pai", o casal até que enfrentou e superou as dificuldades. Batizaram a criança com o nome da rua onde se conheceram. Assim que Paula teve idade suficiente para ouvir e entender histórias, contaram o cômico episódio sobre como se encontraram, entre as paredes de dois banheiros apertados, cheios de cicatrizes.

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