2015/03/23

Porcelana: Tesoura sem ponta

- Como assim, você vai ter que passar o fim de semana cuidando da tua irmã? - Gritou o outro antes mesmo de a fala do rapaz se encerrar.
- Amor, você sabe que... - Ele não ouviu o resto, porque a porta de madeira recém fechada abafou a voz daquele que amava. Trancou-se no banheiro. Uma pessoa inofensiva fisicamente - até então. Se causava mal a alguém, era com palavras. Até aquele momento de sua vida, não havia sentido vontade de ferir alguém. Feriu, outras vezes, internamente. Machucou-se também. Livrou-se de outras pessoas sem a necessidade de sangramentos reais. Só abalos sísmicos na alma. Mas ali, naquele apartamento onde repousava há tanto tempo, ali, naquele 30 de março, data sem grandes marcos em sua vida até então, ali, o local da morte de seu pacifismo, surgiu a raiva brutal de não saber lidar com a situação de forma simples, como, por exemplo, dizer “adeus”. Começou com “como assim, você vai ter que passar o fim de semana cuidando da tua irmã?” e terminou com “desculpa, meu amor, desculpa”, lágrimas, sangue e sirenes.
Respirou até parar de tremer e voltou ao quarto, onde o rapaz reclinava-se sobre o parapeito da janela enquanto fumava mais um cigarro.
- E tua vó?
- Continua internada.
- Que porra, ela não superou ainda?
- O quê, superou o quê?
- Teu pai!
- Cê sabe que não é por causa disso que ela tá internada.
- Ah, que seja, mas acho que essa menina já tá bem grandinha, aposto que consegue se virar sozinha.
- Claro, três anos e quatro remédios pra tomar todo dia, claro que consegue.
- Não dá pra levar levar ela junto com a gente?
- Primeiro, a reserva é prum quarto pra duas pessoas com cama de casal. Segundo, impossível a gente conseguir um novo em cima da hora. Três, a alergia dela é desgraçada, ataca em qualquer lugar novo.
- Queria só você.
- Não queira só eu, não posso ser sua única ocupação.
- Mas você disse que a gente…
- Sim, eu disse, mas não me venha com esse mimimi, caralho…
- Ui, não precisa surtar…
- Não tô surtando, só tô cansado dessa tua carência excessiva. Nem minha irmã doente escapa, coitada. Se eu tivesse prometido um fim de semana com ela e você tivesse ficado doente, eu daria um jeito pra cuidar de você.
- Então se eu ficar doente agora, cê fica comigo?
- Não brinca. Falando assim, parece que cê tá doente da cabeça.
- Doente por você...
- Para. Preciso buscar minha irmã. E pode deixar que vejo o negócio das passagens e do hotel. Vamos em maio?
- Ah... Ok, depois do dia 15.
- Ok, se cuida. E vem visitar a gente amanhã.
- Vou pensar.
- Fica bem, tá?
Abraçaram-se com calma. No peito do outro, um amargor enraizado no coração que ia se expandindo pro resto do corpo, até que alcançou seus olhos, fazendo cair uma solitária lágrima, com algum teor de raiva, e sua boca, dizendo:
- Cara, eu te amo de um jeito que você nunca vai entender.
O rapaz pegou sua mochila aberta e deixou cair um livro, uma carteira de cigarros, um par de chaves e uma tesoura. O outro cismou com o livro, recolhendo-o do chão: - “O amor acaba”, que porra é essa?
- Acaba mesmo, mas isso é a porra é de um livro que tô lendo.
- Como assim, "acaba mesmo"? Cê tá dizendo que a gente vai acabar?
- Uma hora ou outra...
- Tá vendo essa lágrima no meu rosto? Ela vai secar, mas o que eu sinto por você... Quando vai secar? É um oceano que...
- E quando a Era Glacial chegar de novo? Vai congelar.
- Mas ainda assim vai existir, de qualquer jeito.
- E se faltar ar pra gente respirar?
- Não vai...- Você deveria ler esse livro, pelo menos a crônica principal.
- Qual?
- Essa sobre o amor acabar.
- Mas não acaba!
- Amor, acaba.
- É o que você quer acreditar? Que a nossa história vai ter fim?
- Vai, mas não acredito que seja agora. Para de ser estupidamente otimista ao pensar que amor eterno existe.
- Por favor, para!
- De te amar?
- De ser tão infeliz, de querer azedar nosso amor.
- Como, se a vida se encarrega por conta própria de nos destruir? - Pegou os demais objetos caídos, mas não foi rápido o suficiente para segurar a tesoura, que o outro logo segurou com força, mirando o próprio peito:
- Eu faria isso, sabe, se você fosse embora um dia...
- Não seja babaca!
- Por você... - Apertou a tesoura sem ponta contra seu coração.
- Para! - O rapaz tentou intervir, numa tentativa de envolver em seus braços o outro, que desviou velozmente, e agora mirava a tesoura em direção ao pessimista:
- Me diz que a gente vai ficar junto! Fala antes que eu...

Em meio a tanta arte descarregada em papéis, telas e muros, o outro empunhando a tesoura sem ponta jamais encontraria forma mais eficaz de demonstrar e eternizar sua obra de desespero do que aquelas duas cicatrizes no peito do homem que amou. A marca permaneceria perto do coração, ao contrário do afeto entre os dois, que se desfez tão facilmente quanto as linhas usadas para costurar horas depois os pontos no peito do ferido.

- Chama a ambulância e some da minha vida. - Ordenou o rapaz com sua voz lenta e dolorida.
- Desculpa, meu amor, desculpa! - Disse o outro, encharcado em suas próprias lágrimas e sangue daquele de quem estava estendido em seu colo.

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