2015/08/24

Quatro atos sobre perder o chão ou Um movimento interior

Quarta-feira. Não estava atrasado, mas aplicou em suas persas força suficiente para subir as escadas correndo, saltando de dois em dois degraus, costume adquirido aos 14 anos, quando percorria quatro andares de um prédio entregando contra-cheques. Reduziu a velocidade ao avistar o balcão e seguiu andando e diminuiu ainda mais o passo ao ver mais alguém além de sua colega no posto de trabalho, na área exclusiva para funcionários. Aproximou-se, deu bom dia às duas e deixou o olhar sobre a estranha por tempo mais que aceitável quando se trata de cumprimentar pessoas desconhecidas. Sentiu-se desconfortável com a situação e puxou conversa com as duas, sem ainda saber o nome da estranha nem porquê estava ali. Ignorava a existência da colega enquanto ela falava sobre o ritmo de trabalho até então, pois não queria parar de olhar para a outra moça, contudo desviava o rosto toda vez que seus olhos se encontravam. Quando ela o flagrava, apenas sorria timidamente, sem mostrar os dentes. Tinham a mesma cor de olhos, porém, no fundo, ela carregava algo distinto, que despertava nele a vontade de se afundar. Para ajudar, a colega não os apresentou, apenas informou sobre as devidas instruções a serem seguidas e os recados a serem dados para convidados durante o turno do moço, que, mesmo prestando atenção na colega, fazia questão de levar disfarçadamente seus olhos ao rosto da forasteira. Com sorrisos embaraçados, despediram-se e as duas mulheres partiram, deixando a morena de olhar profundo o grande vestígio de sua beleza, correndo pelo lobby do hotel, derrubando o rapaz sempre que tentava se aproximar para sentir o aroma daqueles longos cabelos ou a luz daqueles olhos magnéticos.

Sexta-feira. Não havia movimento, consequentemente, nada de trabalho. Com certo laço de amizade criado, o trio de funcionários do hotel e a morena de olhos profundos, que não trabalhava ali, matavam tempo, jogados sobre os sofás do lobby discutindo sobre qualquer coisa, passeando pela internet, assistindo a tutoriais de origami ou a vídeos da Inês Brasil, ou na janela observando transeuntes, procurando por pessoas que estivessem carregando presentes de dia dos namorados, tiravam sarro de quem passasse com buquês de flores, caixas de bombons etc. Numa óbvia conversa sobre Cinema, o rapaz pensou em falar de Eu Odeio O Dia Dos Namorados, mas preferiu manter o diálogo cinematográfico em um nível mais para a vertente artística-autoral. Da primeira vez que se viram, tirou o encanto pela beleza dela; na terceira, pela companhia. Ele pensou em dizer várias coisas, principalmente na tentativa de fazer a até dois dias atrás desconhecida percebê-lo como não apenas um colega de trabalho de suas amigas. As always, ele queria mais. Mais que olhares sinceros, mais que diálogo... 

Na primeira conversa que tiveram longe do hotel, ainda sem intimidade suficiente para conversas mais abertas, começaram a conversar sobre algo relacionado ao trabalho, e, pouco tempo depois, no meio de um corredor apertado do bar, atrapalhados pelo barulho da música, carregando cada um uma caneca de chope já quente, falavam sobre dramas românticos. Quando ela começou a discorrer sozinha sobre a utilização de técnicas classicamente bressonianas por alguns cineastas e como estes artifícios poderiam prejudicar uma obra se aplicados em demasia, foi aí que ele se perdeu de vez. A morena de olhos profundos falava, empolgada, como se precisasse se aprofundar nisso tudo, na Arte, para sobreviver. Dava uma aula sobre Bresson a um ser que falaciosamente disse  conhecer os trabalhos do francês. Ele não sabia se estava mais encantado por ela ou ainda pelo Cinema. Estendeu a conversa ao máximo, citando seus romances desgraçados favoritos e todo seu rol de assuntos clichês sobre filmes etc, quando ela o convidou para fumar. Sob o céu de junho e a névoa fria, teriam a chance de conversar com mais tranquilidade, mas, para o azar do rapaz, um grupo se aproximou dos dois fumantes para conversar sobre… Sobre o que pessoas bêbadas conversam? Então o grupo dela chegou, assim como o dele, enfim, dando às esperanças do moço um fim. Perderam-se sem dar adeus.

Quinta-feira. Ela já não aparecia com tanta frequência ao hotel quanto fazia na semana anterior. Talvez por ter se cansado da lentidão do rapaz. Ele ainda pensava nela. Outro bar, outra festa. Conheciam a possibilidade de se encontrarem novamente, mas não se renderam a depender do acaso, e seguiam a noite conforme a música fluía e o álcool corria por seus corpos. Demoraram a se encontrar, era por volta das duas - nem mesmo quem vos narra a história saberia apurar o horário exato por também ter bebido muito, tanto que esqueceu da maior parte do que se passou na noite em questão - quando, perdeu-se das amigas e foi ao fumódromo sozinho, respirar ar fresco e tabaco. Acompanhava a trilha de fumaça vomitada por seu cigarro, que, subindo ao céu, unia-se ao que outras chaminés liberavam, e formavam um corpo celeste leitoso, um oceano cinzento, quando ouviu o barulho da porta do bar e olhou. Ela, vindo de dentro do bar, já com um cigarro na boca, procurava em seus bolsos por esqueiro ou fósforos, até que viu ele e foi em sua direção, disparando, de longe, um efusivo e alcoolizado sorriso, maior do que os que o atingira anteriormente. Cumprimentaram-se, com troca de afagos ligeiros nos ombros e beijos no rosto, e conversaram rapidamente sobre a festa. Foi então que o rapaz perdeu o chão: alguém se aproxima da moça, dá-lhe um beliscão na cintura, ela retribui com um “já sentiu saudades, né?”, ela vira as costas e beija quem lhe beliscou e vai embora acompanhada, sem dar adeus. Poderia ser apenas um caso da noite, o que ainda daria alguma chance ao rapaz no restante da noite - ou no restante da vida; um relacionamento de longa data, exterminando no rapaz qualquer encanto; ou um amigo, apenas como brincadeira. Ele não sabe. A dúvida resta e lembrança do profundo par de olhos castanhos ecoa, enquanto se afunda em mais cigarros, destilados e corpos.

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