2016/12/06

Ressaca de novo

Anestesiado pela presença dela ali, no apartamento há tanto tempo assombrado pelos fantasmas da ausência e da solidão, contente com o novo episódio que escreviam ali, em uma madrugada alguns anos depois da primeira colisão de rotas ("há quanto tempo a gente se conhece, dois anos, três?", ela perguntara, "quatro, teoricamente", ele retrucou - porém devia ter dito que a cronologia considerada partia apenas de sua perspectiva, excluindo a dela, que era um tanto mais recente, ele deveria ter dito, não apenas isso -, completando com um trecho da música de abertura, digamos, do que pretendia ser o filme mais extenso que conseguiriam imaginar serem capazes de protagonizar, "I remember it well", mesmo que, de fato, a canção era apenas uma regalia dos primeiros dias, não traduzia sinceramente para uma linguagem musical, somente instrumental que fosse, o que viveram), ela estava em sua casa, e alucinado pelo cansaço e o sono que deixavam a gravidade ainda mais influente, focava o que restava de sua força para com seus dedos percorrer o curto e magnético caminho dos dedos dela. Cada centímetro, desde a base das unhas, passando pelas pontas curtas, às impressões digitais. Entorpecido, tentava decifrar os relevos de seus dedos na tentativa de conhecer o que ainda desconhecia dela, o que era muito. Buscava decifrar sua biometria para entender o código criptografado de suas vontades. O peso do cansaço realmente deixava sua mente e seu corpo deslizarem em fluxos de delírios desconexos. 
Naquele momento, o tempo parecia não fluir, a noite que lentamente se camuflava de dia, o frio era teimosamente ignorado, não pelos corações flamejantes tão próximos, apesar de separados pelos braços das duas poltronas, cada um envolvia-se num cobertor diferente, de que deixavam escapar somente as mãos quentes e um tanto trêmulas, fosse por frio, nervosismo ou alguma sensação que representasse o que alguém ansioso e incrédulo sobre a realização de um capítulo igual aquele em que duas pessoas, depois de tantas corridas, repousavam enfim juntas, mesmo que houvesse a possibilidade real de isso não se repetir; e os rostos, iluminados pelos olhares alheios, radiantes, o que os impediu de fechar os olhos por bastante tempo.
Quando suas mãos se cansaram contra sua vontade, aproximou-se ainda mais dela, afundou-se em seus cabelos, cada fio era uma enxurrada, queria se afogar ali, tão delirante estava que se esquecia de respirar. Cada inspiração pretendia absorver uma parte do que criavam juntos para que as memórias invadissem seus pulmões e dali se alastrassem pelo resto do corpo, da sala, da cidade, da vida.

- Você precisa dormir, o cobertor ainda tá quente, vai - disse ela, com seu fechado sorriso tranquilizante, aparentava temer deixar escapar a intensidade de seu sorriso aberto e explodir, desaparecer na luz, mas ele aceitaria, impulsivamente, fragmentar-se a partir de uma explosão solar dela. “Que ridículo eu sou”, pensava sozinho após considerar o que faria ou não por ela, em que metáforas se transformaria para continuar em sua órbita. 
Pegou o cobertor abandonado na poltrona onde ela deitara, percebeu que seu cheiro permanecia ali, e deitou-se, agora em sua cama, mas não pode dormir o quanto queria ou precisava, sua rotina fluía apressada e a luz matinal inundava todo o apartamento. À noite, quando voltou para seu apartamento, depois do trabalho, agora acompanhado apenas das sombras da memória, o aroma se dissipara. Afirmou para si mesmo que o cobertor voltaria a abriga-la, apesar de não ter certeza disso, que seu cheiro voltaria a se prender às peças de cama daquele lugar - ou qualquer peça de qualquer lugar que os abrigasse - futuramente - suplicava às curvas do tempo para que aquela madrugada se repetisse, que se tornasse rotina, mas não do tipo que corrói os relacionamentos. Esta palavra o amedrontava,  gancho para o que queria esquecer fisgava sua pele, doía. Conseguia rapidamente se desvencilhar do passado e retornava ao recanto das memórias doces que cultivava por ela. Entristeceu-se consideravelmente por se lembrar do que lembrava, mas sua mente recordara da canção que repetira tantas vezes nos agora tantos anos que estavam em desencontro constante: "Not now, maybe later". Talvez. Permitia-se massacrar pela crença em um bad timing como método para dormir melhor, sem ser atormentado pelo pressentimento de que nunca teriam uma chance, a chance de viverem juntos de uma vez por todas.
Não demorou para que seu pessimismo arrombasse a porta da casa, de sua cabeça, como em outras vezes naqueles anos, trazendo boatos de que ela teria passado aquela madrugada com ele enquanto esperava algo ou alguém - quem ou o que quer que fosse -, que ela não gostasse tanto dele quanto ele imaginava, que ele não passava de uma distração, que ele era uma ilusão, que ele daria motivos para uma fuga no próximo - incerto - encontro ou em algum momento no futuro - também incerto - juntos. Fato era que a onda de otimismo sempre vinha trazendo tudo o que queria e se arrastava para longe depois de algum tempo, deixando o solo seco e propício aos piores pensamentos. 
Os dias se alongavam e as lembranças emergiam. Em um momento aleatório, insignificante, passou a mão em seu próprio cabelo e recordou do momento em que ela fez o mesmo, o melhor afago que seus curtos e crespos fios já receberam em muitos anos. Não exagerava ao afirmar que qualquer ato dela, apesar de exagerar na importância deles, mais objetivos do que qualquer palavra, eram de significância enorme para ele. 
Ignorou durante um ou dois dias depois do encontro que tiveram, o mais marcante até ali definitivamente, a questão de que não dependia apenas dele ou da relevância da madrugada que passaram juntos encarando o escuro e deixando-se levar pelas mãos alheias, podia ter sido nada demais, nada de menos, ou tudo. O conforto do silêncio à dois emudecia o que queriam dizer um ao outro. Tinha consciência que qualquer gesto seu posterior àquela ocasião poderia ser praticado ou entendido como cinismo, a união de algumas palavras quiçá soassem como apelativas. Não queria gritar suplícios desesperados, não queria gritar de maneira alguma, e passou dias tentando encontrar um meio de não ser o homem que ela não queria (cínico, chantagista, carente etc), porém não sabia o que ela queria, nem mesmo se queria.

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