2014/08/09

Metro quadrado

Curitiba, sexta-feira, 18 horas e 27 minutos, estação Passeio Público. Tantas histórias, rotinas e pensamentos se apertando naqueles vários metros quadrados.

As duzentas e catorze mil pessoas naquele veículo não lhe importavam, estava a quarenta páginas páginas do final do livro e queria chegar lá o quanto antes. Conseguiu um lugar bom pra se segurar e carregar o livro. No Passeio Público, horário de saída escolar, o ônibus lotou de adolescentes felizes e contentes (ou não) pelo fim da semana letivo. Falavam alto, riam, conversavam sobre inúmeros assuntos. Ele, ainda mal acostumado com a ideia de que era adulto, pelo menos sua aparência transmitia maturidade, resolveu olhar os estudantes com cara séria pra diminuírem o barulho. Nisso, encarou uma ruiva bem ao seu lado. Ruiva natural com sardinhas e tudo mais. "Bonita, mas não tem idade pra mim", pensou sozinho.
A ruiva, o leitor. A ruiva estava ansiosa pra chegar em casa e, entre tantos outros motivos, ficar longe daquele moleque que ela não sabia como dispensar. "Eita piá grudento", reclamava. Aliás, ele também estava no ônibus. Até que demorou pra se aproximar dela. Chegou chegando se posicionando atrás dela, de costas para o estranhão que lia qualquer coisa. Ela então percebeu um cheiro, um cheiro agradável, naquele lugar. Comentou com o garoto, que afirmou que era o cabelo dela, da guria, que disse que "não, é de algum perfume". Era do estranho leitor. Mas o garoto cismou que era dela. "É do teu cabelo, deixa eu me afogar aqui".
No grupo da ruiva com mais de cinco pessoas, ao lado dela, perto do leitor, havia o amigo que estava triste pela chegada do final de semana, pois ficaria longe de seu amor. A ruiva, o leitor, o apaixonado. Apenas ele e sua amiga, a ruiva, sabiam quem era a fonte de noites mal dormidas. "Como é que eu vou confessar que estou apaixonado pelo meu melhor amigo! Ele nunca vai mais olhar na minha cara". Spoiler do futuro: Quase quatro de amizade depois, o apaixonado finalmente se abriu. Tirou o fardo há tanto tempo carregado e enfim aprendeu a voar de tão leve. Voou ao lado de seu amor. Foram longe. Voltando ao Santa Cândida - Capão Raso, sentido Capão Raso, próxima parada: Eufrásio Correia.
O apaixonado encarava disfarçadamente seu amigo. A ruiva perguntou algo, que ele logo respondeu e voltou a encarar a pessoa que o fazia querer viver, que estava entretida numa conversa do grupo. Sentada num banco, ao lado do leitor e da ruiva e em frente ao apaixonado, uma moça sentada observando a todos. A ruiva, o leitor, o apaixonado, a observadora. Não que ela fosse claustrofóbica, não sabia, mas ficar num lugar tão lotado a deixava ansiosa. Ansiedade também crescia a cada segundo que passava sem seu celular alertar algum sinal de vida de seu namorado, que foi viajar num outro ônibus pra um frila na cidade com nome que os tios do pavê adoravam zoar. A observadora estava preocupada, porque o rapaz foi por meio terrestre, e viagem intermunicipal, interestadual, o que fosse, de ônibus a apavoravam.
A observadora percebeu que o leitor soltava algumas palavras em voz baixa, talvez fossem do livro que tinha em mãos. Ou talvez fosse esquizofrênico. "Privilégio... solidão... gente... chorar... olhando..." Não era loucura, era um método que o rapaz desenvolvera para conseguir se concentrar em lugares barulhentos. Parou de ler quando o garotinho que estava com a ruiva começou a incomoda-lo com leves porém irritantes empurrõezinhos, como se para melhor se posicionar atrás da menina. Pra felicidade do leitor, foi ela quem percebeu que o moleque estava atrapalhando outras pessoas. O menino tinha que descer. Inspirou longamente afundando a cara no cabelo da ruiva como se quisesse absorvê-la em seu pulmão. Foi interrompido por ela, que se virou e disse em seu ouvido "eu não quero mais ficar com você". Apenas respondeu "fiquem com Deus, galera, beijo na alma de vocês" e desceu.
A estudante encarou o amigo e cochichou "pronto, falei pra ele. Agora falta você falar pro..." (olhou com o canto de olho para o moço no outro lado da roda). o apaixonado apenas sorriu, pediu calma e falou que sua situação era complicada demais. O celular da observadora enfim tocou. Era o telefone de seu namorado. "Alô, quem fala? Oi, meu nome é Maria e eu tava no ônibus com o rapaz desse celular. Então, moça, teve um acidente aqui e ele foi levado pro hospital". A ligação caiu junto com a pressão da observadora. Encostou a cabeça no vidro da janela e simplesmente não sabia o que fazer. Ainda faltavam duas estações para o leitor descer, mas, ele, precavido que era, começou a se agilizar para chegar a porta quatro. Guardou o livro e começou a pedir licença pra todas as pessoas em seu caminho. No meio do caminho, não tinha uma pedra, mas havia uma loira de blusa amarela com outra azul por baixo que se manifestou antes mesmo de o rapaz pedir pra passar. Gentil, disse "obrigado" e foi retribuído com um "de nada" e um sorriso. Parou atrás de uma mulher que o encarou falando que também desceria na próxima parada. Então o leitor começou a encarar a moça gentil e linda pelo vidro do ônibus. Ela percebeu na hora e procurava os intervalos em que ele disfarçava para olhar para quem a olhava. Um infeliz sentado resolveu escancarar a janela e estragou o flerte dos dois jovens, ele de 22, ela de 21. O leitor olhou diretamente para a moça e perguntou seu nome. Além de leitor, era stalker. Desceu do ônibus, foi fazer o que tinha que fazer na rua, chegou em casa e foi procurar pela bela do ônibus na internet. Encontrou, conversaram, marcaram de sair, começaram a namorar, moraram juntos e ela foi traída. Não nos métodos convencionais. Ele deixou de ser apenas leitor, começou a escrever e, cansado daquela cidade, foi viajar para buscar novas inspirações.
Todas as quatro pessoas naquele metro quadrado perto da porta cinco seguiram com suas vidas, apenas a ruiva e o apaixonado se reencontraram, claro, pois, eram colegas de classe. A observadora, coitada, perdeu o rapaz com quem namorava há oito anos num acidente de ônibus e demorou mais que esse tempo pra conseguir superar o trauma. Foi feliz. Casou. Teve filhas, duas meninas, gêmeas. Aos oito anos de idade, num passeio, uma delas acidentalmente tropeçou e empurrou a irmã lá do alto do Parque Tanguá. Essa mãe, essa mulher, essa observadora, estava fadada a encarar o sofrimento lhe observar e ferrar suas alegrias.
E a ruiva? Ah, são tantas pessoas passando diariamente pelos ônibus que a gente esquece das histórias de cada uma delas. A ruiva só conseguiu se livrar do garoto grudento quando se formou no Ensino Médio e foi estudar em Portugal. Lá, conheceu a mulher de sua vida. Voltou pra sua terra natal trazendo a companheira. Viveram aqui. Viveram ali. Viveram lá. Viveram além.

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