2016/04/24

Quando O Diabo surge

I

Selado o pacto, estava decidido, não mais se envolveria romanticamente com alguém. Ninguém. Julgava não precisar nem querer mais desse item (amor) tão estimado por tanta gente. Queria aceitar sua solidão e conviver com ela distantes da ilusão de conforto quando se “tem alguém”, estava cansado. Foco no trabalho.
Concentrado, manuseava livros, dinheiro e sacolas, o procedimento padrão de todos os dias. Ainda assim, sua visão periférica se ocupava com movimentos e cores ao redor. Em dado momento, percebeu, com canto de olho, uma figura marrom surgindo e logo desaparecendo. Foi um instante rápido, mas suficientemente lento para atrair a atenção e o olhar daquele que guardava dinheiro de troco em seu caixa. O vulto retornou e sumiu mais uma vez, porém Nicolai (digamos que este seja seu nome) conseguiu flagrar o vulto, não era um fantasma, era uma mulher, que poderia se tornar uma fantasma na vida de Nicolai, ninguém sabia naquele momento se isso aconteceria, mas essa história não se foca no fim, apenas no início.
Marya (seu nome fictício), bastante influenciada por seus pais, que, naquele momento estavam no café da livraria, apegara-se à Literatura Russa, principalmente a um conto de Tolstói, que ela tanto recomendava para entes próximos, mas não tinha coragem de emprestar a cópia que tinha em um quase-altar em seu apartamento, então queria encontrar uma versão contendo apenas ele, para que pudesse “alugar” a edição que tinha, uma que incluía mais um conto. Lembrava de, num passado precisamente incerto, de ter visto o tal livro desejado, custando pouquíssimo para melhorar a situação, então se deslocou da seção de literatura estrangeira à de livros de bolso, ao lado do caixa, e começou a procurar. Abaixou-se para olhar nas prateleiras inferiores, enroscou-se em seu grande casaco marrom e lembrou de quase tê-lo deixado no carro por estar calor demais na rua, mas ali, na livraria, fazia frio, tal peça de roupa era útil. Sem encontrar o que queria nas partes baixas da grande estante de livros, levantou-se e voltou a olhar nas prateleiras de cima.
Pouco mais de um minuto depois de perceber a mulher procurando algo, por não haver mais pessoas na fila do caixa, Nicolai foi ao seu encontro e perguntou se precisava de ajuda.
Encarou o rapaz, que surgiu do nada, e disse "oi" e o nome do livro.
Ele começou a procurar com ela.
Quando voltou os olhos à prateleira, sem influência nem auxílio do atendente, Marya mirou o olhar diretamente no desejado livro, mas não era exatamente a edição que queria:
- Vocês teriam uma edição só com este conto? - Apontando para um dos títulos na capa. - É que eu tenho uma versão com esse e um outro, mas quero, se existir, uma só com esse. Lembro de uma que custava cinco reais.
- Só um momento, por gentileza, que vou procurar no sistema. - Disse, Nicolai, andando até um computador de consulta. Digitou as seis letras e obteve alguns resultados, contudo… - Não temos mais em loja, só por encomenda.
- Então quero encomendar.
Seguiram os procedimentos para encomenda, que não importam para este conto, mas, o que realmente interessa aqui, é que: em algum momento desta troca de informações, “é o mesmo nome da minha mãe”, telefone, dados de cadastro etc, em algum instante, como um raio, quando ele pareceu ou quando ela encontrou o livro, ninguém sabe afirmar o segundo preciso do choque, Nicolai olhou para Marya e se perdeu, desfez o pacto que havia selado consigo mesmo, queria amor, precisava se relacionar com Marya, afogou-se, foi absorvido pelos olhos dela, que eram de uma cor entre verde e castanho, ou os dois, ou nada, eram profundos. Talvez Marya, também perdida, submersa, quisesse retornar ali diariamente para procurar livros de Tolstói e, se possível, de preferência, encontrar o amor nos braços de Nicolai, cujo sorriso, sentiu ela, tão magnetizante, dizia tanto, mas ela esperava que dissesse algo que ela não conseguia elaborar em sua mente para falar, alguma coisa que a fizesse ficar ou voltar amanhã.
Marya não voltaria no dia seguinte, mas quando seu livro encomendado chegasse. Nicolai esperava que isso ocorresse quando estivesse lá, para recepcionar e atender Marya, e dizer o que não conseguiu nesse capítulo que termina, quem sabe, neste ponto.

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